306 - A Herança.
Pecados teria os que a maioria das pessoas tem. Não era invejosa e, embora tivesse de seu bom cabedal, era sóbria e gentil com todos. Quando ficou viúva, assumiu a gestão da quinta e dos bens e passou a ser com todos mais exigente. Queria pontualidade, trabalho sério e honestidade, afinal coisas que enchiam a boca dos filhos e empregados sempre que surgisse a oportunidade de se santificarem a seus olhos. Desenvolveu tudo seguindo os seus próprios instintos e, ouvindo embora a família, fazia o que achava melhor sem deixar que o afecto que os ligava interferisse nos negócios. D. Mariana passara a ser conhecida pelo rigor a que ela própria não se furtava e em breve só a designavam por velha, ditadora, a patroa para os menos incomodados. Os dois filhos fariam muito melhor assim que ela desaparecesse e cada um deles tinha o seu projecto. Mariana seguia tudo com tal perspicácia que logo percebeu o desamor latente nos comentários, no azedume de palavras soltas, na soberba das noras, nos silêncios dos netos mais crescidos. Entristeceu, calou-se e decidiu que lhes daria a lição de vida que não conseguiu que aprendessem antes. Recebia o padre no escritório e a conversa era demorada. - Muitos pecados há-de ter a avaliar pela demora, comentavam. E o tempo acendeu raivas, esperanças e desejos em todos. Um dia, sem ter adoecido, não acordou. Foi para todos uma surpresa. Até os filhos escondiam mal a esperança em que o poder lhes viesse lado a lado com o desgosto. Grande funeral, muitas flores, Banda da terra. Teve Mariana o que cabia aos mais insignes filhos da Região. Dois dias depois, reunidos todos para a leitura do testamento admiraram-se da presença do padre que estava paramentado e tranquilo como se previa. Cabia à Igreja, disse o notário, o usufruto e gestão de todos os bens por vinte anos . Findo este período os herdeiros poderiam ter, nos termos da Lei, a sua parte. Na missa do sétimo dia estavam todos menos a família.