Um bom engano

22:34.

Eu tinha acabado de enviar por email, mais um dos meus originais para uma editora. Seriam pelo menos seis meses aguardando por um aceite. Passado esse prazo, podia-se considerar que eles nunca mais entrassem em contato. Eu já estava acostumado. Mesmo assim seguia dando trabalho a eles e enviando meus arquivos. Teimosia fazia parte do ofício do escritor. E também a capacidade de lidar com rejeição e obscuridade. Eu estava trabalhando nisso.

Recebi uma notificação no celular. Era Nagara. Tinha me mandado um texto. Parei pra ler. Gostei das palavras. Ele era bom... tinha paixão. Tinha o que faltava a muitas pessoas.

Deixei o celular de lado e botei algo pra tocar no computador. Miles Davis. Miles in the Sky... Aquele álbum sempre me transportava pra algum lugar dos anos sessenta. E se eu fechasse os olhos e ignorasse toda a tecnologia ao meu redor, sentia como se estivesse dentro de um filme em preto e branco.

Fechei os olhos, mas não deu muito certo dessa vez. Me joguei na rede da varanda e esperei o sono vir. Uma moto acelerou desesperadamente na avenida, quebrando o silêncio da noite. Era o mesmo idiota de sempre. Parecia querer compensar algo que lhe faltava, com aquela moto barulhenta. Os idiotas estavam a caminho de dominar o mundo e estavam vencendo por superioridade numérica.

2

Acordei depois das 10 da manhã. O celular tocou embaixo do travesseiro e eu abri os olhos, assustado. Eu estava coberto de suor.

K. tinha me mandado uma mensagem.

- Vamos ao cinema? – Perguntava.

- Quer ver algum filme específico? – Digitei.

A resposta veio logo depois.

- Qualquer um. Só quero sair de casa.

- Ok.

- A sessão é as 16:30. No São Luiz.

- Perfeito – Respondi.

Larguei o celular de lado, aumentei a velocidade do ventilador e voltei a cochilar.

3

Encontrei K. na entrada do cinema. Ela estava parada junto a uma pilastra com uma lata de refrigerante nas mãos. Usava um vestido preto longo e meio surrado. De maquiagem só tinha sombra nos olhos, o que lhe destacava ainda mais as olheiras.

Andei até ela e ganhei um abraço bem espontâneo.

Se tinha algo sobre K. que eu gostava era que ela estava sempre bem cheirosa. Cheiro de xampu e um perfume leve. Mas também cheiro de mulher. Não sei explicar muito bem além disso.

Ela estava recém-parida. Mas estava com tudo em cima, não dava nem pra dizer que ela tinha tido filho há pouco mais de dois meses. A cria era um menino. Eu ainda não o conhecia, e acho que era o mesmo pra quase todo mundo do circulo social dela.

O pai do garoto era um total idiota. Se preocupava com tudo menos com a criança. Mas a mãe do cara parecia compensar a ausência do pai. Por isso K. já conseguia ter alguma vida além de trocar fraldas e dar peito pra o filho. Apesar disso dava pra perceber o cansaço na cara dela.

- Você já viu Bacurau? – Ela perguntou depois do abraço.

- Já. Assisti em casa.

- Sério? Não viu no cinema?

- Não.

- Que bom então. Vai ser algo diferente.

- Tem fila na bilheteria?

- Eu já comprei os ingressos... Relaxa.

- Quanto te devo?

- Nada, bobo. Foram só cinco reais.

- Tá. Eu compro a pipoca.

- Você sabe mesmo como agradar uma mulher. – Ela disse, com um sorriso.

- Comida sempre cai bem.

- Claro. Claro.

Peguei um grande pacote de pipocas e uma garrafa d’água, e entramos no cinema. Nos sentamos na parte de trás da sala. A sessão estava quase vazia. Estávamos a sós na nossa fila.

K. começou a comer antes mesmo da tela acender.

O meu celular vibrou no meu bolso e eu desliguei antes de ver o que era.

K. terminou a pipoca antes da metade do filme. Depois ficou agarrada no meu braço e com a cabeça encostada no meu ombro boa parte do tempo.

Quando o filme acabou ela correu para o banheiro.

- Ufa. Quase que não me aguento. – Ela disse, ao me encontrar de novo no saguão.

- Quer tomar uma cerveja? – Perguntei.

K. Conferiu a hora no celular e respondeu.

- Só se for no máximo umas duas, ou três. Tenho que voltar pra casa cedo.

- Certo.

- Pra onde vamos?

- Tem um bar legal aqui perto.

Levei K. até um bar que tinha várias mesas e cadeiras espalhadas na calçada. Sentamos e eu pedi dois chopps.

Assim o que o seu copo chegou ela tomou um gole.

- Eu estava precisando disso, menino. – Falou.

Eu sorri.

- Estou vendo.

- Pois é.

- Mas... beber sem brindar, dez anos sem trepar. – Falei seriamente.

- Deus me livre – Ela respondeu batendo na madeira da mesa.

- É superstição, mas eu prefiro não arriscar.

Brindamos e eu finalmente tomei um gole do meu chopp.

Depois do gole, K. me deu um beijo nos lábios. De leve. Sem língua. Mas eu pude sentir o calor que ela trazia dentro de si. Era bom.

- Gosto que você não é daquele tipo de cara que fica em cima. Agarrando. Atrás de sexo logo de cara.

Tomei mais um gole, mas não disse nada.

- Estou calejada desse tipo de homem. Na verdade, talvez eu esteja de saco cheio do mundo mesmo.

- Não acho que haja nada de errado em querer sexo logo de cara. Pelo menos se a coisa for recíproca. – Falei.

- Pois é. Mas ninguém está ai pra reciprocidade. Pra o timing. O povo só quer fuder até o fim do mundo.

- É só mais um tipo de fuga.

- Pois eu não sou o tipo de mulher de fugir do que quer que seja. Não me entenda mal. Eu adoro sexo. Mas tem que ter algum propósito. Tem que ter alguma coisa além da carne. Por que se fosse só questão de prazer físico, eu estou muito bem com os meus próprios dedos.

- É. Faz sentido.

- Acho que as pessoas estão cada vez mais solitárias e assustadas. Daí o álcool, as drogas, o sexo casual... a pornografia. É muito fácil se perder nisso. Muito mais fácil do que a alternativa, pelo menos.

- E qual a alternativa? – Perguntei intrigado.

- Filosofia. Auto-conhecimento. Principalmente Auto-conhecimento. Você não precisa ser um letrado pra se conhecer bem.

- Como você chegou a essa conclusão?

- Muita solidão e um tanto de leitura.

Fiquei olhando pra K. e digerindo suas palavras. Talvez eu tenha olhado fixamente demais. Pois ela se aproximou e me beijou novamente. Dessa vez havia língua e ainda mais calor.

4

K. foi embora depois do terceiro chopp. Pegou um Uber, e eu andei até uma parada de ônibus. Fiquei o caminho de volta com o olhar perdido, para fora da janela. Quando já estava perto de casa, me lembrei do celular desligado no bolso. Liguei e vi a mensagem que tinha recebido ainda durante o filme. Era Hilda. Ela queria me ver... Finalmente.

Achei melhor não responder. Ela esperava de mim muito mais do que eu tinha pra lhe dar. Não achei justo fazê-la perder tempo numa causa perdida.

Desci do ônibus bem na frente de casa. Atravessei a rua, abri o portão e entrei.

O telefone tocou novamente. Era Hilda. Dessa vez uma ligação.

Atendi.

- Boa noite. – Falei.

- Oi meu bem. Onde você está?

- Acabei de chegar em casa.

- Posso passar ai?

- Veja só, você acha que é uma boa ideia?

- Não estou nem ai se é uma boa ideia.

- Eu não posso te prometer nada. Já te falei.

- Não quero saber. Não estou pensando no futuro.

- Tudo bem.

- Ótimo.

Ela desligou e eu subi as escadas.

Quem era eu pra questionar as escolhas dos outros?

Abri a geladeira e peguei uma cerveja.

Ela ainda demoraria a chegar.

5

Hilda chegou em menos de uma hora. Abri o portão e ela entrou sem me cumprimentar. Subiu as escadas e eu fiquei para trás pra fechar a grade.

Quando entrei na sala, ela estava sentada no sofá, com as pernas cruzadas. Usava um vestido branco florido.

- Estava bebendo? – Ela perguntou.

- O tédio é foda.

- Tem formas melhores de afastar o tédio.

- Não quando se está sozinho.

- Você não está sozinho agora.

Hilda se levantou.

- Que tipo de homem você é?

- Não sei dizer.

- Eu acho que você é um cara bem confuso.

- Isso eu sou mesmo.

- Mas quando quer, você pode ser bem esperto.

Ela se aproximou e me abraçou. Pude sentir o corpo dela se apertando contra o meu. Ela me beijou no pescoço e deu uma risada.

- Que tipo de pudor é esse que você tem comigo? – Perguntou.

- Eu sei que você não é o tipo de mulher que se contenta só em transar casualmente. Você quer uma relação. E eu não sou o cara certo pra você. Não quero que você perca o seu tempo.

- O tempo é meu. Perco ele com quem eu quiser.

- Justo.

- Pare de me tratar como uma criança indefesa.

- Ok.

- É um tipo de machismo da sua parte, achar que eu não posso fazer minhas próprias escolhas.

- Pronto. Agora deu. – Respondi, um pouco irritado.

Hilda me soltou e sorriu.

- O que foi? – Perguntei.

- Você fica bem fofinho quando está contrariado.

Me cansei daquilo.

Puxei o corpo de Hilda contra o meu e começamos a nos beijar.

Ela tinha pressa. A pressa de quem esperou muito por alguma coisa. Eu sabia que ela nunca tinha transado antes. Pelo menos era o que tinha me dito. Mas desde que tinha rompido com os conceitos de pecado vindos da sua religião, ela vinha procurando por alguém. Talvez quisesse descontar todo o tempo perdido, agora que tinha encontrado.

Ela me beijava e me mordia enquanto eu corria a mão pelo seu corpo. Ficamos nisso por um bom tempo. Até que ela deixou o vestido cair no chão, com um movimento rápido. Fiquei observando o seu corpo. Ela não usava sutiã.

Hilda se virou de costas para mim e eu a abracei por trás. Ela reclinou o corpo sobre a janela e eu me pressionei contra ela ainda mais.

Hilda afastou a calcinha, olhou pra trás e sussurrou.

- Agora. Eu quero agora.

Baixei minhas calças e a penetrei ali mesmo. Hilda ergueu a cabeça e gemeu baixinho. Pensei tê-la machucado. Mas ela mexeu os quadris de forma que percebi que estava errado.

Uma moto passou rasgando na avenida. Dessa vez quase torci que o idiota se estatelasse no chão.

Voltei me focar em Hilda. Um golpe de cada vez.

6

Quando acordei, Hilda já havia ido embora. Pelo silencio, percebi que estava no meio da madrugada.

Ela tinha deixado as chaves sobre a mesa, junto com um guardanapo com uma marca de batom.

Juntei as minhas roupas espalhadas e procurei meu celular.

O achei descarregado, dentro do bolso da calça.

Liguei o computador e botei um pouco de música pra tocar.

Abri o meu email, por força do hábito e dei de cara com uma mensagem de uma editora.

- Prezado Rômulo. É com todo prazer que envio essa mensagem de aceite do seu original. Por favor, entre em contato conosco segunda feira para formalização do contrato editorial.

Cordialmente Alexandre Rossi.

Conferi a data de envio do original. Tinham se passado sete meses e uma semana desde que eu havia enviado, tanto que eu já considerava o original como rejeitado.

Bem. Aquele era um bom tipo de engano.

Deixei o computador de lado, fui até a geladeira e abri uma cerveja, já conformado que não conseguiria dormir nem tão cedo.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 28/10/2020
Código do texto: T7098759
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