A Vizinhança - I

As palmas se multiplicavam nas janelas dos apartamentos, ritmadas pela cantoria de vozes afinadas e acompanhadas pelas preces entoadas por aqueles que se armam de fé, na esperança de uma cura milagrosa. Coisa bonita de se ver em tempos de incerteza e medo da morte, que passa sorrateiramente ao lado, a espera de um desavisado, que escapa por um golpe de sorte de um espirrar atrasado ou adiantado. A esta hora, um dos vizinhos, munido de um saxofone, fazia um solo da sacada de seu apartamento, enquanto todos escutavam com prazer, aquele espetáculo de solidariedade e união.

Ao findar a apresentação, outro som chamou-lhes a atenção, uma breve sirene se ouviu e uma ambulância parou a porta de um dos prédios, dela saíram três pessoas, tão aparamentadas com seus fatos de proteção que mal se podiam ver os olhos. Puxaram de dentro da carrinha uma maca e a levaram para dentro do prédio; não demorou muito para que voltasse, agora ocupada por uma senhora com dificuldades para respirar, ela ofegante olhou para as pessoas nas sacadas, que estavam agora em total silêncio, parecia que a moribunda fitava cada um nos olhos com um olhar imperativo, de uma ordem absoluta: "Fiquem em casa!" Colocaram-na na carrinha e partiram o mais depressa que puderam. Deste ponto, cessou-se a cantoria e todos se recolheram às suas casas, ouvia-se só o murmúrio das preces.

Aquela senhora era a Dona Ribeiro, bastante conhecida na vizinhança, pois gostava de uma boa prosa. Todas as tardes se reunia com as amigas Mariana e Inês em um café nas proximidades de casa e lá ficavam várias horas a falar sempre dos mesmos assuntos: netos, novelas e filhos. Das três, Ribeiro era a única que nunca falava da família, nunca casara e nem tivera filhos, morava sozinha há muito tempo, então seu assunto favorito eram as novelas e as suas poesias. Mas já havia três semanas que não se viam, desde que fora implantado o isolamento social como medida para evitar o alastramento da pandemia que assolava o mundo todo. Todos foram informados da necessidade de permanecer em casa, as saídas passaram a ser controladas. Mariana não saia mais de casa, os filhos não a deixavam, por vezes ainda tentou escapar, mas logo foi descoberta e Inês, que também morava sozinha, foi ficar de quarentena na casa da filha para ser melhor cuidada. Dona. Ribeiro, como não tinha parentes, isolou-se em casa e durante essas três semanas não se tinha notícias dela.

No prédio em frente ao de Dona Ribeiro, morava Rui, o nosso saxofonista. Ele era Professor de música em uma Faculdade da cidade, casado com Mafalda, tinha quatro filhos: Filipe, de 17 anos, João de 15 e Pedro e Luís, de 5 anos, que chegaram quando os pais já não pensavam mais em aumentar a família. Por causa dos gêmeos, Malfada teve que deixar o trabalho de enfermeira e se dedicar inteiramente à família. Rui depois de algumas horas voltou à varanda e se pôs a olhar para a casa da pobre vizinha, que ele julgava já estar mais "pra lá que pra cá" pelo estado como foi levada pela ambulância. Sentiu-se culpado por um instante: "Como não percebi o que se passava naquela casa, com aquela senhora?", pensou ele. Na verdade, Rui sabia que não tinha culpa, assim como todos, foi obrigado pelo estado e pela prudência a ficar em casa a cuidar de si e dos seus, tentava aliviar o seu estresse e dos vizinhos com o que sabia fazer melhor, tocar. Mas ainda assim, pensou outra vez que poderia ter observado alguma coisa se prestasse mais atenção, então, debruçou-se na mureta da varanda, que era comprida e bem agradável, a olha a casa vazia e o céu, nessa noite, estrelado.Estava mesmo uma noite agradável, boa para ver as estrelas que brilhavam alheias ao cenário de guerra que se desenhava ao redor do planeta. Lá longe, sem fazer ideia do que aqui se passava, formavam o cenário perfeito para um dos singelos poemetos de Dona Ribeiro:

"Desliga o candeeiro,

Meu Bem!

Que São Pedro fechou as torneiras,

soprou seus travesseiros

e soltou os pirilampos no céu.

Vem!

Senta-te cá,

ao pé de mim.

Vem fazer-me um cafune,

debaixo desse céu se fim."