Bandillero

Bandillero

Alexandre Santos (*)

Até os dois anos, ele não sabia exatamente quem era. Sabia apenas que todas as tardes, depois de horas sendo provocado para chifrar uma bandeira acenada por um cara que sempre corria na hora H, era recolhido a uma baia encimada por uma placa com o nome 'Bandillero', onde recebia a ração especial para completar o capim pastado durante o dia pelos campos da Ganadería Miura, no rancho Zahariche, a poucos quilômetros da aldeia de Lora del Río, na província de Sevilha. Mais tarde, quando começou a ganhar consciência da vida, das conversas entrecortadas que ouvia do fazendeiro Juan Gomez com os vaqueros andaluzes, descobriu ser um tourinho Miura, legítimo representante da linhagem BosTaurus, fruto da mistura do sangue quente das estirpes Gallardo, Cabrera, Navarra, Veragua e Vistahermosa-Parladé, e que, se tudo desse certo, como vinha acontecendo com seus antepassados desde 1849, e desenvolvesse a força, a agilidade e a ferocidade próprios da raça, depois de completar cinco anos, se apresentaria numa Plaza de Toros, em Madri. O tempo passou e, já com 500 kg, Bandillero deixara de ser o novilho inexperiente, que diariamente era desafiado nos tentadeiros da propriedade pelos treinadores, para ser um touro majestoso e temido por todos.

E chegou o grande dia.

Na semana anterior, sem compreender as conversas do encarregado Pablo Gonzalez com o homem vindo de Madri, Bandillero ouvira que chegara a sua vez, pois, "um touro velho é esperto e fica perigoso para o homem que vai enfrentá-lo". Logo cedo, juntamente com outros cinco touros, foi colocado num caminhão, que, aos solavancos, o levou para um lugar desconhecido, onde foi encarcerado numa jaula minúscula. O que teria feito para merecer tamanho castigo? Talvez estivesse na Plaza de Toros de Madri, onde conforme sabia desde jovem um dia iria se apresentar. Só o tempo diria o que vinha pela frente. Sem poder fazer nada para mudar a situação, resignado, Bandillero começou a esperar.

Enquanto, sem saber onde estava, Bandillero amargava fome e sede na baia que lhe fora destinada em Las Ventas, a alguns quilômetros, no palacete Liria, Lorenzo Padilla Sanchez desfrutava o conforto da vivenda na qual passara a morar desde que casara com a socialite María Pilar Beatriz Helena Leticia Luna Días de Fernandez y Taylor-Davis Williams, 13ª Duquesa de Martin, numa cerimônia cinematográfica na Catedral de Sevilha. Apresentada simplesmente como 'promoteur da Casa de La Villa', Francisco conhecera a voluntariosa María Pilar, em uma homenagem a ele prestada, no sítio La Pizana, em Gerena, na província de Sevilha, por Dom Santiago Rodriguez de Días de Fernandez, que viria a ser seu sogro. Do momento em que a moça colocou os olhos nele, então vestido com um dos mais belos trajes de luces já produzidos pela Sastreria Fermín, pelo próprio Sebastian Onofre Escobar, até o seu ingresso formal na família Días de Fernandez y Taylor-Davis Williams passaram menos de três meses. Más línguas diziam que Lorenzo alcançara a fortuna graças ao reles golpe do baú aplicado numa riquinha mimada. Mas, não fora assim. Até o reconhecimento social e, com ele, a fama, a fortuna e o casamento com a aristocrata, Lorenzo tinha literalmente lutado muito e, só após abater dezenas de touros bravos conseguira escapar definitivamente da história de dificuldades de onde vinha. Ele merecia aquela boa vida de sombra e água fresca. Aliás, se quisesse, não precisaria mais tourear para ganhar o pão de cada dia, pois, além da fortuna incalculável da esposa, tinha feito ele próprio um invejável pé de meia. Mesmo rico, no entanto, Lorenzo não perdia o gosto pelas arenas.

Lorenzo era um matador e pouco importava o terno que estivesse usando na ocasião. Matar era da sua essência. Era isso o quê ele sabia e gostava de fazer. O gosto por sangue fazia brilhar seus olhos. Antes e acima de qualquer coisa, ele era um toureiro, um matador, um astro e show man das arenas. Embora gostasse do conforto permitido pela riqueza e [gostasse] da fama advinda do passado de glórias, na vida mansa que levava, Lorenzo sentia falta de ver o sangue escuro jorrar das feridas abertas por ele para cobrir os corpos dos touros que abatia com gosto, [sentia] saudades do 'Olé' gritado pela plateia quando humilhava os touros, driblando-os até cravar-lhes a punhalada mortal. Era disso que gostava e foi por isso que, mesmo sem precisar e sabendo dos perigos, aceitou tourear Bandillero, um touro maduro e, portanto, mais perigoso do que os novilhos que abatera nas últimas touradas. Lorenzo tinha as suas razões. Se não acrescentasse uma moeda relevante à sua já imensa fortuna, a matança, pelo menos, serviria como entretenimento para movimentar a vida monótona de Trimagasi que levava como rico inútil.

E chegou o grande dia.

Nas últimas semanas, entregue ao personal training, ao psicólogo e à nutricionista da família, Lorenzo recuperou a forma e o vigor necessário ao espetáculo. Ele estava pronto!

Enquanto se deliciava com um refresco qualquer numa das varandas de La Liria, antes de se dirigir à Plaza de Toros de Madri, Lorenzo lembrou do dia que, após abater duas feras na Real Maestranza, foi conduzido em carro aberto pelas ruas de Servilha. Quanta glória! Quanta satisfação! Seria assim naquela tarde. Planejava fazer o touro dançar em torno do capote e, ao fim, como gesto final de superioridade, antes da estocada de misericórdia, esfregar um lenço branco na sua testa ensanguentada. A apoteose viria após receber as orelhas e o rabo da fera em reconhecimento ao magnífico espetáculo, quando, ao tempo que a carcaça do touro fosse arrastada para fora da arena para ser vendida aos açougues locais, [ele] sairia de Las Ventas nos ombros da multidão. Poderia, então, passar mais uma temporada sem sentir o gosto de sangue, até que uma outra matança voltasse a animar sua vida inútil.

Ao final de longa espera sem sequer um balde d'água para matar a sede, finalmente, com grosseria desnecessária, Bandillero foi empurrado, através de um corredor estreito e escuro, ao desconhecido. Só, então, tonto pelo repentino banho de luz e irritado com os maltratos já recebidos, vagamente recordado de velhas palavras, Bandillero se deu conta que chegara a sua vez de se apresentar na Plaza de Toros de Madri. O ingresso de Bandillero na arena foi brindado com uma sonora algazarra. De imediato, Bandillero se viu numa armadilha, pois, armados com longas lanças, quatro homens vestidos com roupas coloridas, bordadas com prata e ouro, apliques e lantejoulas formaram uma 'cuadrilla' e, nitidamente, desejavam matá-lo. Bandillero, então, tentou fugir. Bandillero não sabia, mas aquela encenação fazia parte do espetáculo no qual se apresentaria. Naquele primeiro terço, o Tercio de Varas, foi cercado pelos picadores que, sem qualquer motivo, o fustigaram, espetando-o com as puyas para zangá-lo e prepará-lo para a muleta. Aos poucos, cada vez mais irritado, Bandillero colocou em prática todo o treinamento recebido naqueles anos todos em Zahariche e, sem sucesso, correndo para lá e para cá, ferido pelas lanças em forma de T, sentiu que perdia as forças. Progressivamente enfraquecido, ferido com pelo menos três estocadas, os picadeiros deixaram a arena, dizendo que começaria o Tercio de Banderillas. Já exausto, Bandillero ainda pensou que, com a saída daqueles homens perversos, fossem deixá-lo em paz. Qual nada. Os tais banderilleros eram tão desalmados quanto os picadeiros e, tão logo entraram em cena, igualmente sem motivos, cravaram-lhe três pares de estacas coloridas com ponta em arpão para rasgarem sua carne e ficarem presas ao dorso e ao pescoço, deixando-o ainda mais furioso. Foi quando, ouvindo alguém dizer que começaria o Tercio de Muerte, esbaforido, enfraquecido, ensanguentado e com a visão turva, viu o homem entrar na arena sob as palmas da plateia. De tão elegante, o homem de trejeitos afetados parecia que ia para uma festa. Meias, sapatilhas, taleguilla, suspensórios, faixa, camisa, colete, jaqueta, gravata e montera e, ainda, uma capa grande, rosa por fora e amarela na parte interna. Era muita coisa para quem pretendia apenas se encontrar com ele. Àquela altura, no entanto, Bandillero não tinha mais porque pensar que as perversidades gratuitas acabariam. Não havia dúvidas. Aquele era o homem que iria matá-lo. E, pensando assim, decidiu partir para o tudo-ou-nada. Em louca disparada, Bandillero correu em direção ao homem, que, usando o capote como biombo, com um gesto teatral, desviou-se segundos antes do choque, fazendo-o, ao som uníssono de 'Olé' gritado pela plateia, chifrar o vento. Bandillero fez mais três ou quatro investidas contra o homem que o irritava, sempre chifrando o nada. Ao final de quase vinte minutos de peleja, já sem forças sequer para correr, viu quando o matador recebeu uma espada de quase 1 metro de comprimento e pensou ser o seu fim. Com os trejeitos afetados que faziam a plateia vibrar, o homem voleou a capa rente ao chão, numa manobra estudada que fez Bandillero abaixar cabeça com patas dianteiras juntas, criando, sem saber, a posição ideal para seu verdugo aplicar um golpe no pescoço para atingir a aorta e matá-lo instantaneamente.

Bandillero, no entanto, não viera de tão longe para ser humilhado por gente que nunca vira ou ser assassinado por um frajola qualquer. Não iria morrer sem, pelo menos, reagir àquele que, sem motivo, queria matá-lo para satisfazer um capricho qualquer. Consciente de que aquilo que faziam com ele não era certo e não era justo, Bandillero decidiu enfrentar o o opressor até seu último sopro de vida. E, ganhando uma energia extra, vinda não se sabe de onde, naquele que podia ser o seu suspiro derradeiro, encontrou forças para erguer o pescoço ferido e, com o impulso permitido pelos seus quase quinhentos quilos de ossos e músculos maciços, pouco se importando com os gritos de dor, cravou o chifre no ventre do seu algoz. Irado, sacudiu a cabeça e, juntou com ela, o corpo preso nos chifres, sentindo o sangue e as vísceras expostas daquele que, instantes antes, queria matá-lo sem dó ou piedade. Ainda com o corpo inerte do homem de roupas coloridas fisgado no chifre pontiagudo, Bandillero investiu contra aqueles que tentaram salvar a sua presa, fazendo uma espécie de desfile da vitória pelo picadeiro da arena, então muda. Bandillero não sabia, mas acabara de abater o toureiro Lorenzo Padilla Sanchez, famoso pela crueldade como abatia suas presas

Embora despercebida nos primeiros momentos, conforme evidenciara o silêncio provocado pela inesperada morte do toureiro, ao demonstrar a possibilidade de vitória do oprimido frente ao poderoso opressor, aos poucos, a atitude de Bandillero passou a ser compreendida, inicialmente pelos operários e, depois, pelo restante do público presente em Las Ventas. Na sequência, em gesto até então inimaginável, culminando o burburinho das pessoas que passaram a respeitar o touro esbaforido e ensanguentado à sua frente, porém vivo e orgulhoso da derrota imposta àquele que queria humilhá-lo e matá-lo, num crescente puxado por dirigentes das Comisiones Obreras, da Unión General de los Trabajadores e da Unión Sindical Obrera, a Plaza de Toros explodiu em aplausos para Bandillero, que, sem querer, a partir daquele instante, se converteu no símbolo mundial da luta dos pobres oprimidos contra o opressor poderoso.

(*) Alexandre Santos é coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural e ex-presidente da União Brasileira de Escritores (UBE)