Agora Eu Acho Graça
"Quando nasci, um anjo safado, o chato do querubim, decretou que eu estava predestinado a ser errado assim". Vai Márcio, vai ser míope na vida, além de estrábico terá astigmatismo, nistagmo e descolamento periférico de retina.
Aos sete anos ganhei um acessório óptico para sanar em parte minha deficiência visual e dar início ao meu inferno astral. Já nos primeiros dias, no recreio da escola, não me chamavam mais pelo nome, mas pela alcunha de "quatro olho", assim mesmo no singular, afinal os quatro não valiam mais que um. Na volta da escola, ao passar em frente a um posto de gasolina, os frentistas se divertiam com minha reação explosiva quando, aos gritos, me chamavam de "quatro olho", "zói torto", "zarolho" ou "instalação trocada". Precisei mudar de rota para me ver livre deles.
Não podia passar por perto de uma brincadeira com bola, que certeira e invariavelmente atingia meus óculos que iam de lentes ao chão, estilhaçando-as. Pior era chegar sem o acessório diante do meu pai que logo perguntava por ele e não me deixava nem concluir a explicação do ocorrido, já dava início à preleção sem fim, só faltava me bater, mas antes o fizesse tamanho era o xingamento. Dizia que iria mandar fazer óculos de couro (antolhos) como aquelas viseiras que colocam em burros para eu usar.
No quintal lá de casa passava um córrego que chamávamos carinhosamente de "corgo da bosta", pois era um esgoto a céu aberto que dividia o quintal em duas áreas. Havia uma pinguela que as ligava e a gente passava correndo sobre ela de um lado para outro do quintal, brincando. A gente não, apenas meus irmãos e os coleguinhas de brincadeira, pois eu, diante da pinguela, via duas e, invariavelmente, pisava na falsa e ia dar de cara nas águas do córrego de bosta. E aí voltava para casa para tomar banho e desinfetar-me.
Aos dez anos de idade tive minha infância interrompida para trabalhar na "venda" de meu pai. Lá tinha de tudo: de agulha a avião. Meu pai era homem trabalhador, comerciante e fazendeiro, curto e grosso, mais grosso do que curto. Seu comércio era o principal da cidade, era parada obrigatória de quem vinha das roças e distritos próximos. Tão logo cheguei ao local, minha imagem grudou na memória da freguesia feito chiclete, como refrão de música popular. Tudo de errado que acontecia era atribuído ao menino de óculos. Os fregueses pediam para que a gente guardasse seus pertences enquanto iam para seus afazeres na cidade. Quando voltavam pediam de volta seu embornal; ao não encontrá-lo, pois não havia um lugar certo para guardar, meu pai então indagava quem havia guardado. O freguês, com dúvida, olhava para nós e, com segurança, respondia: foi aquele menino de óculos. Meu pai então se dirigia a mim, querendo saber do embrulho. Mas quando eu dizia que não fora eu, meu pai simplesmente não aceitava minha negativa e aí vinha com um festival de xingamentos: " Esse menino é lerdo demais, não serve para nada, deveria ter nascido com duas...(fazia o gesto com as mãos, sobrepondo os polegares e os indicadores, formando a figura da genitália feminina) até que o autor de fato chegasse e me socorresse.
Mas nem tudo era só tristeza, a alegria ficava por conta das figuras folclóricas e hilárias que frequentavam o estabelecimento. Destaco o Geraldo Sapo, mestiço raçado a índio, que no auge da juventude, carregava um saco de 60Kg em cada braço e um nos dentes nas exibições de força que fazia. Mas agarrou na pinga até perder toda a força. Bebia um copo cheio de cachaça num único gole, sem encostar nas paredes da goela, já caía direto no estômago. Ele fumava cachimbo que o próprio confeccionava com bambu, habilidade que herdara da sua tribo. Ele o alimentava com fumo de rolo que comprava da nossa mão, nada era mais fedorento. Volta e meia ele raspava a garganta e enchia a boca de escarro e cuspia do balcão lá no meio da rua. Numa dessas, adivinhem quem estava chegando ao local? Ao entrar fui atingido em cheio na cara. Passei uma semana lavando e desinfetando o rosto. Sinto o cheiro daquela escarrada fétida até hoje. Noutra feita, este mesmo Geraldo Sapo podava a trepadeira que ia até o sótão de um sobrado. De repente ele se atracou lá no alto com um gambá e com as próprias mãos esganou o animal e o lançou no meio da rua no exato momento em que passava um ciclista. Quem era o ciclista? Levei uma gambazada no peito e fui ao chão enroscado com gambá e bicicleta. Até hoje não me livrei da catinga do bicho mal cheiroso.
Ao longo da minha vida fatos como estes insistem em me convencer que eu sou um tremendo azarão, mas as pessoas estão sempre tentando me convencer do contrário, dizendo que estas coisas acontecem com todo mundo. Talvez eu tenha focado demais em mim mesmo e não tenha percebido que realmente acontecem com todo mundo. Que acontecesse pelo menos com os meus irmãos, não que eu deseje isto a eles, mas eles bem que poderiam dividir comigo esta carga de azar.
Depois que tudo passa a gente acha graça. A despeito de tudo isto, considero-me um homem de muita sorte e um vencedor. Mas por via das dúvidas sempre trago comigo meus patoás.