DÉJÀ-VU
Lilian tinha os cabelos de cima e de baixo em cores diferentes. Mas ainda assim Carlos achou que aquilo tudo combinava muito bem. O vermelho e o castanho, e o verde dos olhos dela.
Ela saiu do banheiro pingando água por toda casa, e agarrou a toalha que tinha ficado na porta do quarto.
- Porra... Eu sempre esqueço a toalha. – Ela disse, enquanto enxugava o cabelo.
Carlos não falou nada e tomou um gole de café. A bebida estava quase fria e mais doce do que ele gostava. Mas ainda assim ele esvaziou a caneca.
- Estou muito magra? – Lilian perguntou, com as mãos escoradas na cintura.
- Pra mim você está perfeita.
- Pois eu queria ter uns dez quilos a mais. Mas nunca mais consegui recuperar depois do aborto.
- Você fez um aborto? – Carlos perguntou.
- Não. Tive gravidez tubária. Perdi espontaneamente, mas quase morri.
- Quando foi isso?
- Tem quase dois anos.
- Deve ter sido duro.
- Foi bastante. Depois disso eu fiz uma laqueadura. Decidi que não queria mais passar por algo do tipo.
- Você deixou de querer ter filhos?
- Na verdade eu acho que nunca quis. Mas o meu ex-marido queria muito. Depois disso tudo nos separamos. Ele não aceitou muito bem a minha decisão de não querer mais engravidar.
- Pesado. Não sei nem o que dizer.
Lilian terminou de enxugar o cabelo, se enrolou com a toalha e se sentou numa cadeira à beira da mesa da sala.
- É um negócio que muda muito a pessoa, sabe? Perder um filho. Mesmo que esse filho seja apenas uma ideia, ou um punhado de células implantado no lugar errado. Mudei muito como pessoa. –Ela continuou.
- Eu não consigo nem imaginar o que você passou. Sinto muito, meu bem.
- Eu também. E além disso o meu corpo nunca mais foi o mesmo.
- Você está ótima.
- Tu és um doce. Mon amour. – Ela falou forçando um francês pouco espontâneo.
Carlos se levantou e foi à cozinha. Ligou o fogão e botou agua na chaleira para passar mais café. Lilian o seguiu e abriu a geladeira. Encheu um copo de água e se encostou na parede.
- Mas me separar me fez muito bem. Não sou feita pra estar num relacionamento. Pelo menos não do jeito que o meu era.
- E como era isso?
- Acho que ele esperava coisas demais de mim. Que eu fosse, que eu fizesse, que eu sentisse. Era muito mais do que uma questão de amor, ou de tesão. Era toda uma expectativa sufocante, todos os dias... Sair do casamento foi como finalmente poder respirar depois de um minuto prendendo a respiração debaixo d’água.
- Entendo.
- Entende mesmo?
- Na verdade não. Minha história de relacionamentos é bem caótica. Mas nada parecido.
- Você já foi casado também?
- Já.
- E como acabou?
- Ela morreu.
- Sério?
- Sim.
- Me desculpa. Eu não sabia.
- Está tudo bem.
- Deve ter sido muito difícil.
- Foi sim. Não pela morte em si. Mas por todo o resto.
- Como assim?
- Ela morreu num acidente de carro. No caso, o amante dela era o motorista. Descobri que era viúvo e corno ao mesmo tempo.
Lilian quase deixou escapar um riso pela forma que Carlos falou, e ficou olhando pro chão, constrangida.
- Tudo bem, meu amor. Um homem sem chifre é um animal indefeso. Pelo menos é o que dizem por ai.
Dessa vez Lilian caiu na risada.
- Menino. Só você mesmo pra conseguir fazer piada com isso tudo.
- Me demorou muito tempo pra aceitar. Mas agora é como se fosse algo que aconteceu numa encarnação passada.
- Eu não acredito nisso.
- Não acredita que eu superei?
- Não. Em encarnações passadas.
O Café ficou pronto e Carlos encheu a garrafa térmica e a sua caneca. Depois adoçou e soprou pra esfriar antes de beber.
- No que você acredita? – Carlos perguntou depois de tomar um gole.
- Eu acredito que é assim. As pessoas vivem, morrem e pronto. Acabou-se. Só se vive uma vez. O resto é invencionice de gente que tem medo demais da morte pra conseguir contemplar o fato de que todo mundo vai morrer.
- Pode muito bem ser verdade. Mas não é exatamente no que eu acredito.
Lilian deixou o copo de água de lado e se aproximou de Carlos. Ficou frente a frente com ele e perguntou.
- Você acha que já nos encontramos em encarnações passadas? Ou que vamos nos ver em outras?
- Você me traz algo de familiar desde o primeiro momento que te vi.
- Você nunca me disse isso.
- Estou dizendo agora.
Carlos deixou a caneca no armário da cozinha e suspendeu Lilian pela cintura, deixando-a sentada no balcão, e se encaixou entre suas pernas. A toalha escorregou e expôs os seus seios dela.
- O que eu tenho de familiar? – Ela perguntou com um sorriso safado no rosto.
- Acho que eu já morri por sua causa.
Carlos beijou os seios de Lilian e depois subiu para o pescoço e então para os lábios.
- Esse não seria um motivo pra você me deixar? - Ela perguntou, depois de morder os lábios inferiores.
- Sim. Mas eu sou o tipo de cara que nem sempre faz escolhas racionais.
- Que bom então.
Lilian cravou as unhas na nuca de Carlos e o puxou pra mais perto.
Se beijaram por um tempo ainda, até que Lilian parou bruscamente e falou junto ao ouvido de Carlos, quase sussurrando.
- Acho que estou apaixonada por você. Mas não se sinta obrigado a nada.
Carlos ficou calado, olhando Lilian nos olhos. Enquanto ela tentava descobrir o que ele estava pensando. Mas ele só se afastou e pegou a caneca de café nas mãos novamente. Tomou um gole e soltou um longo suspiro.
- A sensação que tenho é que já vivemos isso alguma vez.
- Como assim?
- Déjà-vu. Foi como se eu já tivesse ouvido isso de você. Talvez em outra vida.
- E como você acha que terminou dessa vez?
- Não sei. Não faço questão de saber. Prefiro estar com você aqui... Agora. O resto não importa.
Lilian sorriu, saltou do balcão para o chão e andou até a sala. A toalha tinha ficado junto a pia e ela estava completamente nua.
- Vem cá. – Ela falou, antes de apagar a luz e virar em direção ao quarto.
Carlos esvaziou a caneca e pensou nas tantas peças que a vida já havia lhe pregado, e se Lilian seria mais uma delas...
Ou não.