Literalmente?
- Começa assim: “Lily, a filha do zelador, estava literalmente perdendo a cabeça.”
- Peraí, como assim? Literalmente? Ninguém perde a cabeça literalmente.
- Sim, é apenas uma maneira de falar, sentido figurado.
- Não, não. Perde-se a credibilidade.
- Como assim? Perde a credibilidade? É Joyce!
- Que importa? Poderia ser Homero, mas não se perde literalmente a cabeça! Como usar a palavra “literalmente” para expressar algo figurado? “Literalmente” é o contrário de figurado! Ou se é literal, ou se é figurado, ora!
- Ok, então como deveria ser?
- Precisamos pensar. Talvez seja um erro de tradução.
- Já esperava isso, sua implicância com as traduções.
- Não é implicância. Como está em inglês? Vejamos: “Lily, the caretaker’s daughter, was literally run off her feet.”
- Então, eis aí o “literalmente” em inglês também, seu chato.
- Sim, mas o problema não é o “literalmente”, seu idiota, mas o que vem depois. Lily não perdeu a cabeça literalmente, não há como perder a cabeça de verdade e continuar agindo sem ela.
- Eu sei, eu sei, mas o tradutor quis usar uma expressão de nosso cotidiano. Quantas vezes dizemos que perdemos a cabeça numa situação de stress?
- Você não entendeu, se o tradutor escrevesse: “Lily, a filha do zelador, estava perdendo a cabeça.” Pronto, estaria tudo resolvido, mas daí ele não estaria sendo correto com o texto, pois, este diz “literally”. Então, o nosso tradutor deveria criar uma figura possível de dizer com “literalmente”. Mas, “perder a cabeça” jamais poderá ser literalmente. Veja que no inglês a expressão é: “run off her feet”. Isso quer dizer que a pessoa está sob uma pressão intensa como se desejasse fugir dela. Aí sim é possível o “literally”, pois a expressão deixa de ser figurada e passa a ser um desejo literal, pois Lily deseja fugir daquela situação. Entretanto, nosso tradutor diz que Lily deseja perder a própria cabeça para se livrar da situação que a atormenta, ou seja, Lily prefere a morte. A “nossa” Lily deseja a morte, a Lily de Joyce deseja viver. E mais: a Lily de Joyce entende o que está acontecendo e sabe que há muitas escolhas possíveis, mas a nossa capitula diante de sua pequena perspectiva existencial.
- Meu deus, você está sendo extremamente radical, cara! E estamos apenas na primeira frase do conto.
- Sim, eu sei, mas é preciso. Nosso tradutor criou uma outra personagem. A Lily de Joyce não pensa da mesma forma que a Lily de nosso tradutor. Ele mudou a história!
- Entendo, então o que devemos fazer?
- Chame o Bernardo e vamos recomeçar.