O GALO PRETO

O casamento de Carlos e Laura não estava indo lá muito bem. Coisa que tinha muito a ver com o desgaste que o tempo impunha a tudo, mas que também era dado às diferenças de personalidade do casal. Não tinham filhos e talvez isso fosse parte do problema, pelo menos para Laura. Carlos andava cansado, mas mesmo assim, persistia e tentava manter firme a relação que alternava entre dias bons e ruins. Mesmo que visse os dias bons se tornarem cada vez mais raros.

Muito para fazer os gostos da esposa, desde o começo do casamento, varias vezes na semana os dois iam à casa do pai dela para jantar. O velho Clóvis era viúvo e morava com uma das filhas que não casara. Laura sempre fora a preferida do pai, e quando saíra de casa cinco anos antes, o velho quase entrou em depressão. Por isso Laura se dedicava tanto a ele, com as frequentes visitas. Inicialmente Carlos não se incomodava. Mas o velho não ia muito com sua cara, assim como a cunhada. E ele terminava sempre ficando isolado num canto da casa enquanto os outros conversavam.

Pra piorar, Laura havia dado de presente ao velho, um pinto que comprara numa exposição de animais. O bicho cresceu rapidamente em um enorme galo preto que ganhou o nome de Meia noite.

O animal era intratável. Atacava qualquer pessoa do sexo masculino que se aproximasse. Principalmente se essa pessoa fosse Carlos. E ai de quem achasse ruim.

Quando Carlos entrava pela cozinha o bicho já se armava e ele sempre tinha que passar correndo pra dentro para não levar uma bicada.

Como o velho era muito religioso, todo dia, às seis horas da noite, se sentava à beira de um rádio para ouvir a ave-maria e rezar o seu terço antes do jantar. O galo ficava em seu colo bebericando café e comendo cuscuz em um pote de margarina. Só depois do terço que o bicho era recolhido para um galinheiro improvisado no quintal, onde ficava até as cinco e pouca da manhã, quando começava a cantar e o sogro o vinha recolher.

Nos últimos anos a saúde dele tinha se deteriorado rapidamente e o velho já estava meio cego. Por isso, Laura resolveu se mudar para a casa do pai para lhe dar mais assistência. Carlos às vezes dormia por lá, pra que o casamento não caísse num abismo mais frio do que já estava. E foi assim que começou a se acostumar com os humores do galo, que depois de um tempo passou a ignorá-lo.

Certo dia, o sogro teve uma piora brusca de saúde e teve que ser internado. Tanto sua esposa quanto a cunhada se alternavam no hospital acompanhando o velho e por isso Carlos ficou responsável por cuidar da casa e do galo.

Carlos era engenheiro de software e trabalhava como autônomo. Por isso fez do antigo escritório do sogro seu lugar de trabalho e passou a morar lá também.

Assim que o sogro foi levado numa ambulância, Meia Noite caiu num estado deprimido que era de dar pena. Compadecido do galo, Carlos começou a repetir com ele a rotina do velho. Assim que amanhecia, Carlos soltava o animal no quintal e quando começava a anoitecer, se sentava numa cadeira de balanço no quintal e ligava o rádio de pilhas. Inicialmente, Meia noite continuou a ignorá-lo, mas com o passar das semanas, o galo começou a pular no seu colo para ouvir as notícias do futebol, já que Carlos não era tão religioso quanto o sogro.

Assim se passaram dois meses até que no meio de uma madrugada de terça feira Carlos recebeu uma ligação da esposa em prantos, para informar da morte do velho. Curiosamente, nesse dia, Meia Noite não cantou quando amanheceu.

2

Depois do sogro enterrado, Laura decidiu ficar ainda um tempo na casa do pai, muito por questão de apego, mas também por falta de vontade de voltar para a casa que havia construído com Carlos.

O pedido por separação não demorou muito a vir, e Carlos concordou, por saber que quando Laura botava algo na cabeça, dificilmente mudava de ideia. Resolveu que não valia à pena argumentar, ainda mais num período de luto como aquele.

Apesar disso, a sensação de derrota e de perda de tempo ficaram entaladas em sua garganta.

Carlos ficou morando sozinho na casa que antes tinha sido dele e da esposa. Afogou-se no trabalho como fuga, como sempre tinha feito nos momentos de crise de sua vida. Os dias passaram sem que pensasse muito na separação, mas talvez pelo costume e convivência, percebeu que sentia falta do galo. Comprou uma cadeira de balanço igual à do sogro, um rádio de pilhas e todo fim de tarde, sentava-se sozinho para acompanhar as notícias do dia.

Por um bom tempo, não ouviu de Laura sequer uma palavra. Mas enfim, a encontrou após a missa de um mês da morte do finado sogro.

Quando esbarraram na escadaria da igreja, Laura estava de mãos dadas com um primo, e parou, como se tivesse se assustado ao vê-lo.

Ela se desvencilhou bruscamente das mãos do acompanhante e se aproximou de Carlos.

- Foi uma missa bonita – Carlos falou.

- Foi sim. – Laura respondeu, ainda um pouco espantada.

- Como você está?

- Estou indo. E você?

- Trabalhando muito. Tentando ficar em pé.

- Imagino.

- Como está Meia noite? – Carlos perguntou.

- O galo?

- Sim...

- Ele anda tristonho. Sem querer comer. Acho que vai morrer de banzo.

- Posso vê-lo?

- Você está falando sério?

- Estou sim. Acho que me apeguei ao bicho.

- Certo. Tudo bem. Passa lá em casa amanhã.

- Vou passar.

Laura se despediu e se afastou. Carlos a observou de longe, até que entrasse no carro e arrancasse pela noite.

3

Quando Carlos entrou pelo quintal da casa do finado sogro, Laura parecia bem. Bem melhor que ele, pelo menos. Carlos pode ouvir a voz do primo de Laura e da ex-cunhada vindo da parte de dentro da casa, conversando alegremente. Mas nenhum dos dois apareceu para recebê-lo.

Já o galo estava empoleirado dentro do galinheiro fechado.

- Como você está? – Carlos perguntou.

- Estou mais conformada.

Carlos não soube se ela falou em relação ao divórcio ou à morte do pai.

- O tempo há de curar tudo.

- Sim. – Ela respondeu laconicamente.

Carlos se aproximou do galinheiro e Meia noite abriu as asas ao vê-lo.

- Ele não quer saber de ninguém. Come muito pouco. Não sai do galinheiro pra nada. – Laura falou.

Carlos não respondeu e abriu o galinheiro.

Meia noite saiu e começou a ciscar pelo quintal.

Carlos foi até a cadeira de balanço e se sentou.

Assim que o viu sentado, o galo andou em sua direção e pulou em seu colo.

Carlos fez carinho em suas penas e perguntou finalmente.

- Posso ficar com ele?

- Você está falando sério?

- Claro.

- Não sei... Você vai saber cuidar dele?

- Nós ficamos muito bem nesses últimos meses. Acho que ele se apegou a mim.

- Ok então. Pode levá-lo.

- Obrigado.

Carlos se levantou e juntou as coisas do galo que estavam dentro do galinheiro e colocou tudo na mala do carro.

Como se tivesse percebido tudo o que estava acontecendo, Meia noite o seguiu de um lado pro outro durante o processo.

Assim que terminou, Carlos sentou Meia noite no banco de trás e se despediu de Laura.

- Fica bem, ok? Se precisar de qualquer coisa me ligue.

- Vou falar com o meu advogado sobre os papéis do divorcio. Assim que tudo estiver resolvido eu lhe procuro.

- Faça tudo jeito que você achar melhor.

- Vou fazer.

Carlos entrou no carro e dirigiu até sua casa. Quando chegou já era noite. Passou um café, sentou-se na cadeira de balanço e ligou o rádio de pilhas. O galo pulou no seu colo e os dois ficaram bebericando do café. No rádio o locutor gritava mais um gol do Sport, que vencia o Náutico por 2 x 0.

Carlos não comemorou muito, em respeito ao finado sogro, que era Alvi-Rubro. Já o galo que não parecia se incomodar muito com a derrota. Aninhado em seu colo, Meia Noite enfim, caiu no sono.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 19/10/2020
Código do texto: T7090991
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