Sim, o mundo não precisa de Arte!

Essa é a história, baseada em fatos parcialmente reais, de um colega de trabalho, que relato para “o bem” desse mundo pós-pandêmico de 2050, como orientação moral suprema.

Ainda naquela época de mortandade, há trinta anos, um colega de trabalho havia postado que se havia algo que essa (então nova) pandemia havia mostrado foi que não precisamos de artistas.

E eu pensei, pensei, e daí pensei um pouco mais... E ruminei, e tive insônia, e esquematizei o mundo mentalmente, e, enfim... Sabem o quê concluí? Ora, concluí que ele estava certo, CER-TÍS-SI-MO! E cabriolas de volatim num átimo passaram a dominar meu pensamento.

No dia seguinte, encontrei esse colega em sua escrivaninha. Do seu lado um radinho despejava as notícias locais. Entre uma e outra rodavam vinhetas e propagandas (com música!). Pedi, então, licença ao colega, dizendo-lhe que, convencido que estava pela sua máxima, precisava eu ajudá-lo a concretizá-la em sua vida, e, num rompante, catei-lhe o radinho e, sem dó nem piedade, arremessei-o ao chão, pisoteando-o violentamente. – Pronto, amigo, eu te compreendo, e não pouparei esforços para que tua vida fique livre para sempre daquilo que abominas.

Mas notei também que ele usava um boné novinho, de um viçoso azul marinho, bom tecido, com uma logomarca em bordado de alta qualidade. – Poxa, fico triste por ver-te ainda escravizado, então, me permita... E retirei-lhe o acessório, ação à qual ele, ainda assustado e sem saber o que fazer, mas com cara de quem já queria me agredir, enfim questionou: - Ei, o que tu tá pensando? Isso é meu!

- Ê, ê, ê, ê, ê, freei-o com um gesto veemente de PARE. - Amigo, o mundo realmente não precisa de arte e, sabe, teu boné infelizmente passou pelas mãos de algum designer que, maldição, provavelmente teve de engolir rudimentos de artes visuais em sua formação.

Meu colega JK (irei abreviar para preservar-lhe a identidade), me olhava estupefato, mas, curiosamente, virou a cabeça levemente para o lado, franziu uma das sobrancelhas para cima e pareceu começar a compreender minhas atitudes.

- Olha, há mais algumas coisinhas que precisam mudar, disse-lhe ainda. De uma sacola tirei um pelego remendado, com um furo no meio (para a cabeça) e dois outros nos lados (para os braços) e dei-lhe em troca de suas roupas, pois estas, para a “sorte” do argumento de meu colega, obviamente haviam passado também pela mão de designers de roupa, além de subordinarem-se às tendências da moda, sendo que, por fim, roupas comumente são coloridas, o que não podia mais ser tolerado. Tudo, menos o agrado à visão!

Pedi-lhe, em seguida, as chaves do carro, um HB20, e trouxe-lhe um modelo ala Flintstones, de madeira bruta, com direito a freio no pé mesmo. Então, rumamos para sua residência, comigo já ao volante de seu Hyundai, e ele, resignado, de braços cruzados, dentro de seu pelego, aparentemente estava tentando digerir a situação, mas, então, repentinamente passou a uma atitude passiva, olhos ao mundo, como quem se percebe iluminado, presenteado com uma dádiva suprema, uma nova oportunidade, um renascimento.

– Sorria, caro colega, não há nada mais importante na vida do que viver de acordo com o que se prega, disse-lhe eu feliz por estar prestando tamanho serviço humanitário.

Em frente à sua residência, notei que esta tinha boa pintura, uma varanda em frente, um jardim com flores e o gramado aparado, com certeza tendo sido planejada por um arquiteto, esse tipo de profissional desnecessário à existência humana. Vibrando com a possibilidade de continuar tão dramática metamorfose vital, apossei-me das chaves de sua casa e rumamos para sua nova moradia.

Volteamos por mais de uma hora e chegamos a um ponto distante, que por aqui costuma ser chamado de “tifa”; caminhamos por mais vinte minutos mata à dentro; afastamos alguma vegetação que cobria um buraco em um barranco e, então, avistamo-la: uma caverna úmida, mas que permitia proteção contra algum animal da redondeza e também contra o sol e a chuva. – Tcha-rãn, disse-lhe eu com um sorriso que ia de uma orelha a outra, pois minha alma era pura emoção que eu não conseguia conter.

Ele, de pés já descalços, o pelego a cair-lhe quase como um vestido, abaixou-se e deu uma espiadinha lá dentro. – Pois é, e eu te digo que consigo viver aqui, disse-me resoluto, como quem havia se convencido de que tudo o que estava acontecendo não era fantástico, mas o corolário necessário de sua postagem.

Deixei-lhe um estilingue e uma machadinha de índio, para que pudesse preparar os demais provimentos para sua existência.

Por último, mas não menos importante, deixei-lhe, entalhados em pedra, seus novos dez mandamentos:

1) Não venerarás qualquer ícone da pós-modernidade (em especial artistas de qualquer tipo, mas também qualquer pessoa vinculada ao mundo ao qual não pertences mais), e, por isso, abominarás qualquer forma de mídia social, bem como seus meios técnicos de reprodução (TVs, aparelhos de som, celulares etc.), pois estes quase que unanimemente veiculam as obras de tais profissionais inúteis;

2) Não terás nenhum apreço pela forma externa, visual, de qualquer objeto em teu entorno;

3) Não pronunciarás palavras em vão, respondendo, quando muito, “sim” ou “não”, usando apenas palavras técnicas em quantidade somente necessária para te fazeres compreendido, e, por isso, jamais porás os olhos novamente em qualquer livro, revista, jornal ou qualquer publicação, exceto manuais explicativos; P.S. 1: a Bíblia também não poderá ser lida em hipótese alguma, pois os Salmos, em sua poética, são nocivos a tua nova dignidade humana; P.S. 2.: como a palavra é a base também das artes cênicas, não travarás diálogos mentais fictícios em teu viver e desprezarás toda sorte de manifestações cênicas e cinematográficas; P.S. 3: não participarás de qualquer momento de contação de histórias (sejam “causos”, piadas ou qualquer outro tipo de narrativa), pois a literatura, oral ou escrita, ficcional ou baseada em fatos reais, é perigosa para a mente do novo homem que tu serás;

4) Jamais, em hipótese alguma, participarás de qualquer festejo que envolva culinária, danças e músicas e que reúna pessoas apenas pelo prazer do convívio, e, por isso, evitarás participar da Festa de São João, do Carnaval, da Páscoa e do Natal (pois há muitos enfeites correlacionados a esses festejos) e, por extensão, também de nenhum evento artístico, ao vivo ou teletransmitido;

5) Ao encontrares tua família, teus contatos serão somente aqueles necessários para saber como estão subsistindo teus parentes, sendo vedadas quaisquer manifestações de carinho e amor, pois os afetos são a base da manifestação artística;

6) Matarás todo aquele que discordar de ti;

7) Ser-te-á proibida qualquer relação sexual, pois, por sua natureza intimamente ligada ao prazer, o sexo mantem forte vínculo também com as artes, e, por isso, quando o desejo bater, irás pescar;

8) Da natureza poderás tirar teu sustento, tomando dela o que te aprouver;

9) A verdade será apenas o que pensares;

10) Olharás o restante da sociedade, ou seja, aqueles a quem poupares a vida, sem qualquer traço de inveja ou cobiça.

Deixando o meu colega, que de joelhos me agradeceu, em sua nova vida, despedi-me dele e não mais dele tive notícias e nem as busquei, pois tive a mais absoluta convicção de que viveria feliz e realizado.

Eu, porém, compreendi-me incapaz de viver em tal grandeza de humanidade e, em pecado, me mortifiquei a cada dia, retendo aquele pensamento fundante, de uma obviedade de tipo ululante, através do qual se proclama: Sim, mil vezes sim: NÃO PRECISAMOS DE ARTE.

12.05.20