297 - O Escritor
Quando, para se fazerem entender, as pessoas começaram a gritar e a perder-se em repetições da mesma conversa, teve a certeza de que estava surdo. Já via mal ao perto e, ao longe nunca viu bem. Como estava aposentado, isolava-se a fazer coisas que ninguém apreciava. Enquanto se conseguiu vergar, tratou do jardim, alindou com pedras os canteiros, varreu o quintal, deu comida aos bichos, manteve ordem no espaço. Tudo o que era inútil deitou fora, tudo o que já não vestia deu ou mandou para a reciclagem. Decidiu sozinho por terem a mulher e os filhos desistido de conversar com ele. Depois tornou-se mais selectivo nas tarefas a que metia ombros. Deixou de fazer grandes mudanças e passou a cuidar da manutenção fora da residência, a por o carro a trabalhar para preservar a bateria, a jogar cartas com gente que conheceu nas idas à taberna. Os dias arrastavam-se e nem sempre vinha satisfeito para casa. Pelo Natal o neto deu-lhe o computador velho por não precisar dele. – Se não o quiseres, deita-o fora, disse. E Cirilo aprendeu a usar o equipamento, renovou o que foi preciso, comprou e instalou na garagem a impressora, e começou a escrever as suas memórias. Concluiu, pouco depois, que ninguém escreve memórias, inventa-as, transforma-as, adultera quanto baste para parecerem verdadeiras. E de mentiras andava ele farto! Deu, depois disso, seguimento a histórias que partiam do nada e se edificavam por si. Juntava e mudava palavras, reescrevia, enfronhava-se o dia inteiro na nova ocupação e era raro ser visto. Tão raro que se a fome o não trouxesse à mesa das refeições se esqueciam dele. Um dia deu a ler os escritos a um editor, acordou os pormenores, sugeriu a capa e o livro, finalmente, saiu com uma dedicatória estranha: Este livro poderia ser dedicado a meu neto Rui por me ter dado um computador velho mas como fez isso para que fosse eu a libertá-lo de um traste seria injusto. Foi por mim e para quem vier a ler que escrevi.