295 - Sombras
Aprendeu cedo a ser transparente. Quando sentia o cheiro do Mayflower do cachimbo fugia, escondia-se ou, se não pudesse, ficava como uma estátua sem se mexer, a suar frio, a fechar os tímpanos para eventuais gritos. Ele era o padrinho rico e ela a órfã que tinha ali as sopas e os medos. Veio adolescente e logo ao primeiro dia foi apresentada às normas da casa, às coisas que deveria fazer e àquelas que, se fizesse, teria resposta severa. Desaprendeu a olhar o rosto dos outros e passou a senti-los pelos cheiros, pelas sombras, pelo rumor dos passos. Nunca falava e quando tinha de responder era em som surdo, quase inaudível, a medo. Nunca a maltrataram mas também nunca a incluíram quer nas conversas quer nos jogos ou nas brincadeiras de salão. Ignoravam-na, não a viam, nunca contavam com ela para nada. A roupa era a que as filhas do padrinho não queriam e o mesmo acontecia com tudo, livros, pulseiras ou sapatos. Naquela tarde, ao tentar desaparecer quando sentiu que entravam, foi, bruscamente, agarrada por um braço e atraída para um tronco alto e forte. Percebeu-lhe a respiração ofegante, o hálito quente, a pressão nos dedos. A seguir ele levantou-lhe o rosto, olhou-a de perto e disse-lhe: - Gosto de ti. Quando por fim a largou ela correu para o quarto, o coração a bater-lhe forte, as lágrimas a correr. Tinha de sair daquela casa por já saber que nunca a aceitariam como mulher do Jorge, o filho mais velho. Ele, porém não desistiu e antes forçava as situações, as conversas breves, os encontros aparentemente casuais. Um dia, sem saber de onde lhe vinha a força, escreveu um agradecimento a todos e voltou para a aldeia. Esperou que Jorge a procurasse ou escrevesse mas o rapaz havia-a esquecido.