294 - O Aposentado
Ria-se sozinho. Hoje, olhou para o relógio de prata que trazia no bolso da jaleca, conferiu com as horas que o ponteiro dava no marcador de parede e disse: - dão-lhe corda, adianta-se, se se esquecem fica atrasado até parar. É uma máquina com reacções quase humanas. Tal como ele, Artur Gonçalves, ao longo da vida que já ia a caminho dos noventa. Quando lhe aumentaram o tempo de trabalho e o salário ficou na mesma, trabalhara com grande lentidão. O que antes era feito com facilidade, emperrava numa ou outra coisa, adormecia pelo caminho e o que a administração julgou ganhar perdeu em toda a linha. Havia um doutor dos falsos a tiranizar o pessoal que nunca chegou a perceber que fazia mais um homem de vontade que dez insatisfeitos. Quando o velho dono da Empresa viu as folhas e os gráficos dos ganhos a apontarem para baixo, desatou aos gritos e, como na tropa, mandou voltar tudo à primeira forma, isto é, aos horários anteriores e mandou ainda que reforçassem o pagamento dos que indicou. Bem sabia ele como lhe doía nas costas o peso das cargas quando, jovem inexperiente, pobre e sem saber fazer nada, foi posto a alombar com sacas de cimento. Só muito depois se livrou de penas e fados ainda a tempo de casar com a herdeira daquilo tudo. Tinha a lição sabida, conhecia as manhas, sabia por si o que a casa gastava. Na altura Artur foi feito chefe e, se deixou a parte mais pesada das tarefas, acrescentou ronhas capazes de mobilizar os antigos colegas para poder dar o rendimento pretendido. Quiseram-no com melhores roupas, ofereceram-lhe o relógio de prata. Quando se aposentou viu que o dinheiro encolhera tanto que o desporto preferido passou a ser acompanhar a Teresa em tudo o que fizesse e a descansar como se tivesse feito ele. Viu de novo as horas, conferiu-as e comentou: ou lhe encho o bucho de corda ou este relógio de parede finge que sou eu.