Derrotas

Naqueles dias eu andava gripado. Minha respiração fazia um barulho estranho, como um gato engasgado com uma bola de pelos. A última mulher com quem eu tinha estado, resolveu fingir demência e desapareceu da minha vida sem dar muitas notícias. Com certeza estava com outro. Macaco esperto só solta um galho quando já está com a mão em outro. E ela era do tipo esperto de macaca, como toda escorpiana que eu conheço. Que bom pra ela, enfim.

Eu estava morrendo de vontade de enfiar o pé na jaca e beber até cair, mas por covardia ou por um senso estranho de autopreservação, eu resolvi ficar de cara e assistir um filme ou algo similar. Me deitei com o computador de lado, mas não consegui me concentrar em nada. Me levantei da cama e fui até a sala. Chutei uma tampa de garrafa que estava no meu caminho e minha gata correu atrás, como se a tampa fosse um bicho vivo. Deixei-a brincando e fui até a cozinha. Eu tinha algumas cervejas na geladeira, mas novamente, beber não parecia a mais sensata das ideias.

Era uma merda estar sozinho numa sexta feira e não poder encher a cara.

Resolvi tomar um banho. Larguei a minha roupa junto à porta do banheiro e entrei debaixo do chuveiro. Liguei o aquecimento e esperei que a água quente me trouxesse algum conforto.

Fechei os olhos e respirei fundo o ar carregado de vapor. O calor só aumentou a vontade de estar com alguém. E eu me senti quase triste com aquilo. Então o chuveiro fez um barulho estranho e de repente o aquecimento parou de funcionar.

- Merda! – Resmunguei.

Saí debaixo da água e fechei a torneira.

Me enxuguei e larguei a toalha em cima da porta do banheiro. Ouvi um barulho do lado de fora e andei nu até a janela da sala para ver o que era. Dei de cara com a vizinha no apartamento do lado. Ela estava com os peitos expostos e a cabeça pro lado de fora da sua janela. Um homem a pegava por trás enquanto ela gemia de olhos fechados. Percebi logo que o cara não era o marido dela.

Acho que eles não perceberam que eu os tinha visto. Mas me afastei pra garantir alguma privacidade ao pecado deles. Não que ela parecesse ter alguma preocupação com isso.

Aquele fato foi a gota d´agua da noite. Resolvi ligar o foda-se pra a minha saúde. Me vesti, tomei um comprimido de descongestionante e saí de casa.

Não faltavam bares abertos em Recife, mas eu não tinha a mínima ideia de onde eu deveria ir.

Pedi um Uber para o centro de cidade e desci no meio da Conde da Boa Vista. Procurei um bar que não estivesse muito cheio e assim que achei, me sentei numa mesa e pedi uma dose de conhaque. O garçom me serviu e me deixou só. Tomei a primeira dose e pedi outra que esvaziei rapidamente. A partir da terceira eu já me sentia bem melhor. Mas ocasionalmente a tosse me lembrava de que eu não devia estar bebendo.

Foi então que duas mulheres na mesa do lado começaram a discutir alto.

- Minha irmã, tu acha que é minha dona é? – Disse uma delas, levantando a voz.

- Baixa o tom que eu não estou gritando com você. – Respondeu a outra.

- Você tá ai pagando de doida, Amanda. Eu não aguento mais as suas cobranças.

- E eu não tenho mais paciência essa situação. Não nasci pra ser amante.

- Não tem paciência, mas vive atrás de mim do mesmo jeito.

- Olhe Rafaela, por mim já deu. Se você quiser dar essa sua buceta pra um cachorro de rua eu não estou nem ai. Pode voltar pro seu macho escroto.

Rafaela não pareceu se ofender, mas se levantou. No seu rosto tinha um sorriso debochado.

- Você sempre baixa o nível. Não sei onde eu estava com a cabeça quando me apaixonei por você.

- Você fala isso como se tivesse a capacidade de se apaixonar. – Amanda finalizou.

Rafaela deu uma risada de deboche, pegou a bolsa que estava pendurada na cadeira e saiu do bar.

Amanda ficou sozinha na mesa, com um copo cheio de cerveja.

Pude ver uma lágrima cair do olho dela e cair dentro do copo. Ela parecia realmente mal. A outra, nem tanto.

Voltei a me concentrar no meu conhaque. Por algum motivo, ele pareceu mais amargo do que antes. Talvez a amargura de Amanda tivesse respingado sobre mim.

Continuei bebendo sozinho e em algum momento Amanda se levantou e foi embora.

Perdi a noção do tempo, pensando em todos os meus problemas, mas enfim a tosse tinha ido embora. De alguma forma, eu me sentia muito melhor.

Acho que já estava na décima dose, quando percebi Amanda retornando para o bar de braços dados com outra mulher. As duas visivelmente bêbadas. Mas Amanda ainda parecia estar bem sob controle. Elas se encostaram no balcão e pediram uma cerveja. Se beijaram e ficaram sussurrando qualquer coisa que eu não consegui entender.

Me levantei para ir no banheiro, e quando voltei, as duas estavam na porta me esperando.

- Minha amiga aqui nunca fez um ménage. Você já fez? - Perguntou a amiga de Amanda, com um sotaque de quem não falava português perfeitamente, e misturava um pouco com espanhol.

- Já. – Respondi.

- E ai?

- Não é nada demais. Não tem nenhum mistério.

- De qual tipo foi o Ménage? – Continuou

- Eu e duas mulheres numa ocasião, e em outra, eu e um amigo, junto com uma mulher.

- E você pegou o seu amigo?

- Não.

- E qual a graça nisso?

- Não da pra rolar algo se você não sente atração.

Ela parou para pensar por um instante e então continuou.

- Você quer fazer um ménage com nós duas?

Amanda não pareceu gostar muito da ideia e pegou a garota pelo braço pra voltar pra a mesa. Mas ela se soltou e voltou a me olhar.

- Como é o seu nome? - Perguntei.

- Meu nome é Rayssa. Mas e ai, você vai?

- Sua companheira não parece muito interessada.

- Ela só precisa de um pouco de incentivo. E eu estou com fogo pra mais de uma pessoa hoje.

Amanda me olhou com cara de poucos amigos e eu respondi.

- Vai ter que ficar pra outro dia, Rayssa. Aproveita tua noite com ela.

- Eu só quero se for com os dois. Senão vou pra casa sozinha.

- Sinto muito. Acho que hoje não é um bom dia pra isso. - Falei, e voltei para a minha mesa.

Esvaziei o meu copo e olhei a hora no celular. Passava das duas da madrugada.

Quando guardei o celular no bolso, Amanda se sentou numa cadeira bem ao meu lado.

- Nunca fiz um negócio desses. – Ela disse, sem me olhar nos olhos.

- Você se chama Amanda, não é? – Perguntei.

- Sim. Como você sabe?

- Eu estava aqui mais cedo, quando você discutiu com outra mulher.

- Ah sim. Entendo. Desculpe por isso.

- Tudo bem. Acontece.

- É. Acontece...

- Você gostava muito dela? – Perguntei.

- Sim. Mas era um caso perdido.

- Não vale a pena insistir em certas coisas. Talvez tenha sido melhor assim.

- Tenho certeza que sim. Mas vai demorar um pouco até parar de doer.

- E você acha que sair com alguém hoje vai ajudar? – falei, me referindo a Rayssa.

- Acho que não.

- Pois é.

Nesse momento Rayssa estava encostada novamente no balcão, flertando com o Garçom.

- Acho que ele é veado. Não quer me comer. – Ela falou alto, talvez para que eu ouvisse.

Mas eu ignorei e continuei olhando pra Amanda, que tinha os olhos marejados, bem na minha frente.

- Acho você deve ir pra casa. Tentar botar a cabeça no lugar. – Falei.

- É verdade. – Ela respondeu, enxugando os olhos. Depois ela me olhou e abriu um sorriso amarelo, que parecia ser mais um escudo do que um sorriso.

Não me lembro de ter visto olhos tão tristes quanto àqueles alguma vez na vida.

- Se dói tanto é por que não era para ser. – Falei por fim.

Amanda concordou com a cabeça e o sorriso desapareceu do seu rosto. Mas a expressão que veio em seguida foi de serenidade. A serenidade de quem enfim se conformou com uma derrota. Aquele sentimento me era bem familiar. Mais do que eu gostaria.

Nesse momento percebi que o garçom levou Rayssa pra dentro do bar.

Imaginei que ela finalmente ia conseguir o que estava querendo naquela noite.

Me levantei da cadeira e fui ao balcão pagar a conta.

Quando estava saindo do bar, uma chuva começou a desabar do lado de fora.

Amanda parou do meu lado e perguntou.

- Pra onde você vai?

- Vou andar. Não tenho destino certo hoje.

- Posso ir com você? – Ela perguntou.

- Claro. – Respondi. – Sempre cabe mais um no time dos derrotados.

Ela sorriu. E seguimos os dois pelas ruas encharcadas. Cada qual com o seu peso.

Cada qual com sua derrota.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 07/10/2020
Reeditado em 08/10/2020
Código do texto: T7082291
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