O Velho

Me aproximei do fogareiro onde algumas brasas queimavam e enchiam o ar de fumaça perfumada de incenso. Me sentei num banco de madeira e o velho deu uma risada acolhedora.

- Boa noite, meu fio.

- Boa noite, meu velho - Falei.

- Meu fio tá bem?

- Não muito. Tem muita coisa na minha cabeça ultimamente.

E então o velho me disse, sentado bem na minha frente, com a bengala na mão.

- Meu fio andou pirdido pru muito tempo na vida, num foi? Mas até os discaminho levam pra algum lugar. As veis quando a gente não sabe pra onde ir, é mior parar de andar. Meu fio sabe o que eu to dizeno?

- Não sei dizer se sei.

- É milhor assim, meu fio. Quando mais a pessoa acha que sabe, é ai que mais ela ta errada.

E ele esticou a bengala e encostou no meu ombro.

- O véio aqui já andou muito por onde não divia andar, e já sartei muito poço e muito estrepe, e foi pela graça de nosso sinhor que o tinhoso não me panhô nas treva dele. Mas uma hora eu cansei de correr e parei pra ouvir o que o vento tava dizeno pra mim. Meu fio já parou pra ouvir o vento?

- Se eu falasse que já, eu estaria mentindo.

- O vento fala com a gente, meu fio. O vento, as água, o chão. É purisso que eu falo pouco, e ando sempre com meus pé descalço, que é pra ouvir o que a terra tá me falano.

O velho tomou mais um gole de café na caneca de barro e deu um trago no cachimbo.

- O homi veio pru mundo e aqui tem tudo que nois precisa pra ser filiz. Tem tudo meu fio. mas o que o homi procura? Procura o que num pode tê. Procura ter o que é do outro. O homi tem inveja, o homi tem raiva e tem ódio. O homi branco pegou os preto e disse que nois era tudo iscravo. E o preto ficou com o coração cheio de revolta. Mas e o indio, meu fio? o indio, os branco mataro quase tudo, e inda hoje, os que ainda tão vivo, vive fugindo, ou lutano pra não perder as terra que sobraro pra eles. E os índio que eram os dono dessa terra toda aqui. Essa terra todinha meu fio. Cabia todo mundo em paz aqui dentro. branco, preto, indio. Mas o branco achou pouco. O branco sempre acha que tem menos do que devia ter.

- Mas a escravidão acabou, não foi?

- Acabou, meu fio? Tem certeza? Meu fio já viu o que o homi faz pru dinheiro? O homi mata, o homi morre... O homi se aperta nessas carroça grande que anda sem cavalo, que mais parece os navio que trazia os nêgo da África pra cá..., e o homi trabaia de manhã até quando o sol já foi embora. Uns faz isso pra ter o que comer. Mas outros fazem pra ter umas pataca no fim do mês. E pra trocar por coisa. Coisa pra vestir, coisa pra usar no pescoço, coisa pra mostrar que tem.

E tempo meu fio? tempo pra viver. tempo pra cuidar dos fio? tempo pra olhar pra Deus. Pra olhar pra dentro? Até os nêgo tinha mais tempo quando era escravo. Os grilhão só mudaro de nome mesmo.

- Acho que o senhor está certo.

- Chegue cá, meu fio. Deixe o véio olhar você mais de perto. Num tenha medo não.

Eu me aproximei, e o velho deu um trago no cachimbo e olhou fundo dentro dos meus olhos.

- Meu fio carrega um peso que não é dele. Tem muito rancor dentro do seu coração. De maldade que fizeram com meu fio. De muita mintira e muita traição. Mas nada disso é seu, meu fio. Sunçê já tá tão acostumado a sentir essa dor, que cumeçou a acreditar que ela faz parte de suncê. Meu fio só vai voltar a ser filiz quando deixar isso tudo de lado.

- E como eu faço isso, meu velho?

- Meu fio tem que parar de andar... parar de correr desembestado pelo mundo e pela vida tentando chegar a argum lugar. Tentanto ter as coisa só pra provar que pode ter. Meu fio tem que aprender a se perdoar, muito mais do que perdoar os ôto. Ainda tem muito amor pra suncê viver nessa vida, se suncê aprender abrir os óio e o coração.

- Vou pensar nisso. Mas não é fácil.

- E se fosse fácil, meu fio, qual era o sintido?

Concordei com a cabeça e o velho abriu um sorriso.

Ele pegou uma vela e levou até a boca do cachimbo.

- Fecha os zóio e abre os braço, meu fio, que eu vou soltar uma fumaça pra afastar essas coisas ruim docê.

Pude sentir o cheiro e o calor da fumaça no meu rosto e foi como se ela arrastasse consigo parte do peso que eu sentia preso às minhas costas.

Quando abri os olhos o velho estava sorrindo.

- Tenha fé, meu fio. E nunca deixe de fazer suas oração. Deus te abençôe.

O velho então se levantou e foi mancando até o fundo da sala.

Me levantei e quando olhei para trás antes de sair, pude ver o velho desaparecer no meio da fumaça, como se fizesse parte dela.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 03/10/2020
Código do texto: T7078479
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