Bate-volta
Naquela tarde toda a família estava eufórica correndo apressada
pela casa com seus cacarecos que abarrotavam as mochilas e as bolsas.
Todos falavam alto e sorriam muito empolgados com a viagem que
fariam logo mais, todos menos Verônica. Ela, ao contrário de todos, não
tinha o menor interesse em fazer aquela viagem. Não gostava de sol, não
gostava de areia, não gostava das companhias que iriam também no
ônibus e não sabia nadar. Para ela aquela viagem seria um porre que
duraria um dia eterno. Pegou somente o básico: o biquíni vermelho
cavado que havia comprado há um tempo, mas que nunca teve coragem
de usar, foi escondido no fundo da mala, itens de higiene pessoal, uns
shortinhos, uma blusa larga com topzinho que provavelmente usaria em
vez do biquíni, chinelos, toalha e, não poderia faltar, seu Rivotril
pessoal, o celular e os fones de ouvido. Caso contrário, não sobreviveria
àquele dia.
Débora, a irmã mais velha, não perdia uma oportunidade de
zoá-la:
— Só vai levar isso?! ̶e tirando a blusa larga já dobrada que
estava na mochila ̶Você parece um moleque. Assim não vai arrumar
namorado nunca, mas vai arrumar uma namorada logo, logo.
Ao contrário da irmã, Débora ia com um arsenal, preparada para
a guerra. Levou uma infinidade de cremes e maquiagens além de três
conjuntos de biquínis: um vermelho, um azul e um amarelo. Segundo
ela, de acordo com o seu temperamento escolheria a cor adequada lá
mesmo.
Verônica ficava aborrecida, mas raramente respondia às
provocações da irmã. Sabia que quanto mais demonstrasse estar
chateada, mais provocada seria. A mãe, no entanto, sempre tentava
apaziguar a situação:
— Débora, não incomode sua irmã e avenha me ajudar a
preparar os marmitex que levaremos, senão perderemos o ônibus.
Tudo pronto para a viagem, trancaram a casa e foram até a
praça onde seria o ponto de embarque. De longe, Verônica avistou o
ônibus e as pessoas que lá já estavam conversando aguardando os
demais. O pai tratou de colocar as coisas mais pesadas no bagageiro:
cooler para as cervejas, garrafa térmica, caixas de isopor, cadeias e
guarda-sóis. O organizador da excursão corria de um lado para outro
auxiliando as pessoas a guardarem as coisas no bagageiro, conferindo na
sua lista quem faltava chegar, atendendo ligações e ligando para checar
quem faltava. Verônica olhava passivamente as cenas e ouvia as
conversas. Sempre as mesmas: histórias de praia, o que comeriam lá, o
que fariam quando chegassem. Era um saco! E o seu salvador foi
imediatamente sacado do bolso. Escolheu uma playlist e colocou o som
no máximo. Sua irmã sentada ao lado conversava e mandava áudios
impacientemente. Até que se levantou de seu lado e disse um “até que
enfim” tão alto que mesmo com os fones, Verônica pôde escutar. Era o
namorado Bryan chegando, finalmente, e que estava atrasando a partida.
Todos entraram no ônibus e o trajeto seguiu alegre para todos,
menos para Verônica. Ao longo da viagem que durou a noite e parte da
madrugada, no aparelho de DVD do ônibus, os passageiros revezavam-se
na escolha da trilha sonora da viagem. As músicas escolhidas eram as
mesmas, mudavam-se apenas os cantores. Ao fundo do ônibus sempre
viajam aqueles que não dormiam e que iam conversando até a chegada
ao destino. Revezavam-se também no uso das poucas tomadas para
carregarem os celulares, a disputa era grande:
— De quem é esse celular aqui? Já carregou vinte por cento.
Vou colocar o meu que está descarregado - dizia um dos passageiros.
Verônica apenas revirava os olhos. Na poltrona atrás da dela, ia
um homem que roncava alto parecendo engasgar-se no próprio sonho,
mas isso não parecia incomodar Débora que estava sentada ao lado dela e
dormia profundamente. O namorado ia em outra poltrona, por
recomendação do pai das garotas que não queria que os dois sentassem
próximos na viagem. Verônica recostou-se na poltrona e apoiou a cabeça
na janela, olhando o escuro lá fora, desejando estar em sua cama
confortável.
Quando chegaram ao destino, outra algazarra. Ao lado de fora
dos banheiros formavam-se filas e mais filas de pessoas desgrenhadas
com toalhas nos ombros, caras amassadas, nécessaires nas mãos, alguns
já traziam a escova com creme dental e tudo, presa nos dentes pelo cabo.
Verônica era a próxima da fila a usar o banheiro, atrás dela estavam
Débora e o namorado e mais atrás os pais. A mulher que estava no
banheiro demorava e todos já começavam a reclamar. Quando finalmente
saiu, Débora passou à frente da irmã derrubando seu nécessaire. Ainda
com a porta entreaberta, ela olhou para a irmã e desdenhou:
—Eu vou demorar mais que você, por isso preciso de mais
tempo. Você só vai escovar os dentes mesmo e sair - e fechou a porta
sorrindo.
— É, você com certeza precisa de mais tempo - resmungou
baixinho.
— Tudo bem com você, Verônica? ̶perguntou Bryan
entregando a nécessaire suja de areia de volta à dona.
— Tudo, não se preocupe. Obrigada.
— Ela não faz por mal, eu acho. Ela só é meio... você sabe.
— É. Eu sei.
Ainda eram por volta das seis da manhã quando o ônibus
chegou ao destino. Após desjejum, todos foram escolher um lugar para
ficar, abrir os guarda-sóis, colocar as cadeiras. Débora havia escolhido o
biquíni vermelho para o dia, sentou entre o namorado e a irmã. Os pais
ficaram ao lado desta. Como não perdia uma oportunidade de implicar
com a irmã, Débora soltou:
— E então, menino, você não vai colocar seu biquíni? Aliás,
você não tem um, né? Então, por que não trouxe uma bermuda de
surfista para combinar com esse blusão aí? A praia é democrática - disse
rindo em seguida.
Verônica tinha um rosto com traços delicados, olhar bem
expressivo e nariz definido. Não gostava de usar maquiagem, além de um
batom nude que era seu inseparável companheiro. O cabelo era preso no
topo da cabeça por um coque desgrenhado. Não era muito antenada à
moda, usava o que via pela frente. Às vezes era necessário que a mãe lhe
alertasse que deveria comprar roupas novas ou sandálias, caso contrário
ela usaria os mesmos por anos. Débora, ao contrário, tinha uma
infinidade de roupas, sapatos e acessórios. Passava horas assistindo
tutoriais de maquiagem no YouTube. Foi assim que ela aprendeu a
disfarçar o nariz que os colegas de sala tanto implicavam com ela.
Quando menor, chamavam-na de nariz de batata e aquilo a irritava
profundamente.
— Para já com isso, Débora. Viemos aqui para nos divertir.
Não para você ficar provocando sua irmã — interrompeu a mãe.
O pai nunca se metia nas provocações da filha mais velha, aliás,
ele até sorria de vez em quando dos insultos e apelidos que Débora
criava. Para ele tudo aquilo eram coisas de adolescentes e que elas
mesmas se acertassem. A mãe, no entanto, sempre ralhava, mas era em
vão.
No seu íntimo, Verônica apenas dizia: “só preciso aguentar até o
fim do dia”. Em casa as provocações continuariam, mas pelo menos não
precisaria estar obrigatoriamente tão próxima a ela como ali sob aquele
guarda-sol. Verônica apenas recolocou seus fones de ouvido e
contemplou a beleza do mar. Observou como as ondas se debatiam
ferozmente e vinham até a areia da praia. A força do vento é responsável
pela revolta do mar, é por meio da ação dele que as ondas são formadas.
Quanto mais aquele age mais, intensidade há na resposta. As ondas ainda
continuariam agitadas por mais algum tempo.
Débora e os pais resolveram arriscar e entrar na água. Verônica,
como sempre, era a segurança dos pertences da família, e às vezes até de
outros excursionistas que pediam o favor a ela de olhar malas e mochilas
enquanto tomavam banho de mar. Naquele dia, porém, Bryan faria
companhia a ela, pois não poderia tomar sol devido a orientações
médicas.
De onde estava, Verônica podia ver a família afastando-se cada
vez mais em direção à água. Ela tirou os fones, soltou o cabelo preso pelo
coque, passou para a cadeira da irmã onde o sol pegava melhor, tirou a
blusa larga que usava e os shorts, ficando apenas com o biquíni
vermelho. Ela o usou enfim. Bryan ficou um pouco sem jeito, pois
sempre que ia a casa dela visitar Débora, a via com roupas tão largas que
nunca imaginou que por baixo haveria um corpo com tantas curvas.
—Você poderia passar protetor solar nas minhas costas onde
eu não alcanço?-perguntou ela.
Bryan, um pouco trêmulo, mas parecendo desejar aquilo, tomou
o protetor de suas mãos e começou a espalhá-lo:
— Você está nervoso? — perguntou ela provocando-o.
A pergunta o deixou mais nervoso ainda. Ela continuou, já que
não houve resposta:
— Você pareceu preocupado comigo mais cedo, na fila do
banheiro.
— É... algumas atitudes da Débora me irritam... Tem
momentos em que ela age como se fosse minha mãe me dizendo o que
fazer e como fazer.
— Ela é assim mesmo. Com todos. Mas você não precisa
aguentar ela. Eu sim, afinal ela é minha irmã e família ninguém escolhe,
infelizmente. Você não está espalhando o protetor. Está colocando em um
lugar somente.
— Tem razão. Desculpe — disse, tentando disfarçar o
nervosismo.
Os dois ficaram em silêncio até que ele terminasse.
— Pronto! Acabei!
Ela virou-se para receber o protetor de volta e seus olhos se
cruzaram. Ele ficou estático, ela, no entanto, aproximou-se dos lábios
dele e o beijou. Um beijo que começou timidamente, mas logo foi
correspondido por ele intensamente. Após o beijo, ela levantou-se da
cadeira e voltou para a sua. Ele fez o mesmo.
Ao longe, Verônica avistou a família saindo da água. Manteve os
olhos fixos na irmã enquanto ela caminhava pela areia até que chegasse
mais próximo e seus olhos se encontraram. Débora olhou para o corpo da
irmã no biquíni da mesma cor que o seu e em seguida para o namorado
procurando algo errado, mas não encontrou. Para quebrar a tensão do
momento soltou:
— Olha! O menino resolveu usar biquíni. Mas tinha que ser
igual ao meu?
Pela primeira vez, Verônica pensou em responder à provocação
da irmã, mas lançou um olhar para Bryan que foi respondido com
cumplicidade e preferiu calar-se, reconfortando-se com a ideia de que a
resposta já havia sido dada. Colocou novamente seus fones de ouvido e
recostou-se na cadeira olhando para o mar. Os banhistas já se arriscavam
a nadar até mais longe. Àquela hora do dia, o mar estava mais calmo e
suas ondas menos intensas. O mar, porém, não precisava provar para
ninguém o poder que tinha nem o que era capaz de fazer, bastava-lhe
apenas ser.