282 - Joaquina
Antes da memória não existia. O que sabia de si fora contado. Que era grande e rosada, olhos claros que escureceram, gritos agudos que silenciavam no fundo de si, tranquilos como lagos. A Vida, disse o sábio, acaba com todos os excessos, até com os mais bonitos. Depois vem-nos uma calma que se confunde com alheamento, com sabedoria. E se estamos gostamos de estar, se sentimos, é bom sentir, se nos magoamos temos na memória da dor um aviso. A sua vida era um caminho cheio de avisos, tabuletas, apitos e raros momentos de paz. Na paz costumamos adormecer. Na paz, para tudo e o tempo, em vez de andar, arrasta-se. Na guerra, pelo contrário, o que valia ontem é hoje para esquecer. Muitos ardem por vontade e fingem depois que nunca viram fogo, outros, assumem o fogo e são expulsos. A expulsão é o começo de outra etapa. Fora assim com ela. Pegou em duas mudas de roupa e saiu para que o seu ventre dilatado não ofendesse a honra do pai. Era inútil avisá-lo porque, como muitos antes dele, o problema não era seu, o filho poderia não ser, que ela sabia que as crianças não vêm no bico de cegonhas benevolentes. Olhou e viu a mãe em lágrimas. Ela também era fraca para se impor e Joaquina, decidida, seguiu para onde ninguém a conhecia. Aceitou ajuda do companheiro de viagem, teve o menino em sua casa, nunca se casou com ele nem foi dele amante. Há, ainda, gente assim. Há anjos em todo o lado. Via-os por acaso e todos os que, em dias maus procurou, eram vermelhos e tinham cornos.