O BISÃO NEGRO: CONGELADO
 
Jon tenta puxar Trincado por seus pelos, mas eles são curtos demais e muito duros. Os pequenos dedos do menino escorregam e, mesmo que conseguisse agarrar, lhe faltariam forças para puxar ou empurrar o grande bisão. Os passos do animal continuam lentos e constantes, mirando para onde as árvores são menos frequentes.
A floresta entre Barlad e Vogar é pouco frequentada, já que serve como divisória entre os reinos Gor e Curi. As árvores estão congeladas das folhas até as raízes, mas foram feitas para isso. Sua madeira é mais escura e úmida, usada com frequência para confeccionar arcos e outros bens que precisem de flexibilidade.
No entanto, a madeira dos carvalhos negros não serve para fazer fogueiras duradouras. Por serem muito úmidas, seus troncos queimam pouco e dificilmente uma fogueira feita com eles durará a noite inteira. A atividade predileta dos moradores de Gor e cidades próximas é fazer fogueiras, justamente pelo frio intenso que faz na região. Mas pela madeira presente na região ser tão escassa apenas os mais abastados têm lareiras dentro de casa.
Jon Barlad tem uma lareira no salão principal do castelo e outra no quarto de seu pai, que fica próximo o suficiente para ajudar a esquentar o seu próprio aposento. Dizem que os guardas também têm uma, onde passam a maior parte do tempo. No entanto, Jon trocaria todas as lareiras e boa madeira da sua casa por uma agora mesmo, no meio da floresta congelada onde está.
– Me ajuda a te ajudar, Trincado – reclama ele. – Quanto mais longe vamos da estrada mais frio fica e menos eu sei se saímos ou não do curso. Você tem esse pelão, mas eu não tenho nem bigode.
O bisão não responde às reclamações, apenas caminha.
– Fico em silêncio daqui até Vogar se você vier comigo.
Nada.
– Até Grisgown então, não falarei um só pio. Não vou reclamar, eu prometo.
Trincado diminui o passo por um segundo, mas logo volta à sua vagarosa e constante caminhada.
– Vamos fazer um acordo então. Se vier comigo até a estrada te deixo voltar à Barlad.
O animal para. Ele vira a cabeça e observa Jon, mira seus olhos como um arqueiro prestes a atirar. Jon fica corado.
– Você sabe que eu não posso prometer isso, ne – o menino nobre é sincero quando sugere a vida ao bisão, mas apenas por ter a chance de voltar às suas duas lareiras.
Trincado volta-se para frente e caminha, agora mais rápido, mas sem correr.
– Não vou mais discutir com você, é um animal idiota. Não pensa, não tem como entender que estou com frio. Nunca senti tanto frio, na verdade. Minhas lembranças mais vivas são com calor. Minha primeira cama, coberta sempre com mantas de carneiro e pele de bisão. O abraço dos meus pais quando acertei minha primeira flecha no alvo. Aquele caldeirão – ele para de falar e Trincado não caminha mais.
Em frente aos dois há uma enorme clareira. Nenhuma árvore nasceu sobre um pedaço enorme de terra, coberto pela neve que cai sem parar, mas lentamente. O bisão dá poucos passos à frente, mais devagar do que de costume, tomando cuidado com as patas. Ele as arrasta mais do que pisa, empurrando a camada branca e deixando à mostra o barro. Trincado faz isso até que não sai barro de baixo da neve, mas aparece uma camada de gelo.
Eles estão diante de um enorme lago congelado, tão grande que dar a volta significaria quase voltar à estrada.
– Viu, aqui é o limite, agora temos que voltar – afirma Jon, chegando mais perto e constatando o lago de gelo.
Com o pelo ouriçado, o bisão negro bufa e continua a caminhar, sem parar, constante, lento. Ele não esfrega mais as patas, apenas anda e torce para o gelo não ceder. Seu peso faz a estrutura ranger nos primeiros dois metros, trincar até o quinto e quando chega na metade do lago ele para. Olha para trás, para Jon, que não ousou segui-lo.
Trincado sorriria se pudesse, mas está em silêncio. O animal volta ao seu caminho, usa as patas poderosas e peludas para atravessar o que resta de lago e chega até o final intacto. Jon observa tudo atônito, preocupado com caso o bisão caia, mas também seria um alívio se livrar da obrigação e ter uma boa desculpa.
O menino nobre não tem outra opção além de fazer o mesmo. Se um bisão enorme atravessou o rio e nada aconteceu, quer dizer que não será problema para ele. Jon dá os primeiros passos e percebe Trincado o observando. O animal mistura descontentamento e preocupação em seus olhos negros e expressivos.
Os passos pequenos o levam pelo mesmo trajeto percorrido pelas patas peludas. Ao chegar na metade, o bisão vira de costas, percebendo que não se livrou do menino, e volta a caminha para o meio da floresta. O gelo trinca, cede, e Jon desaba dentro da água congelada, deixando seu capuz e cachecol sobre o gelo.
Os pés enormes de Trincado ecoam por sobre o gelo, enquanto os olhos do menino perdem a cor, sentindo seu pescoço ser pressionado pelo pano colorido enquanto água invade sua garganta. Tudo fica escuro e silencioso.
– Jon? – uma voz feminina inunda seus ouvidos, mas com a força do mundo o nobre sente suas entranhas serem arrancadas do corpo.
A luz preenche sua visão e sente o frio, os dedos se fecham como que procurando um alvo para socar. Trincado o observa de perto, ainda não totalmente aliviado. O bisão está fora do lago congelado, assim como o corpo pequenino de Jon.
– Vamos voltar para a estrada? – pergunta o menino, após longas respiradas.
O bisão bufa e vira de costas, voltando a caminhar rumo à densa floresta congelada.
Lucas de Lucca - 23 anos
Enviado por Ilda Maria Costa Brasil em 22/09/2020
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