AMANHÃ, SE HOUVER (5 vidas - 1 parte III)

Meu nome é Romualdo da Conceição Cruz, mas sempre me chamaram de Donda. To escrevendo essa carta porque sei que vou morrer e eu preciso desabafar. O pastor não veio e como não tenho nenhum chegado aqui, vai ser na folha mesmo. Espero que achem esse texto e que mainha pelo menos saiba o que se passa aqui dentro da minha cabeça. Eu tô ligado, meu parceiro. Nenhuma mãe merece passar a dor que eu causei. Eu sei e lembro disso o tempo todo. É aquela né, lei do retorno: tudo o que vai, volta. É assim todos os dia. E todos os dia é uma dor diferente.

Sabe, meu consagrado, hoje tá estranho, saca? É como se tivesse alguém de butuca me esperando em um corredor qualquer pra me dar o bote. Fora os pesadelo. Toda noite. Eu tô ligado! Toda prisão é assim. Não é a primeira vez que eu me meto em crocodilagem. Acho que os cara vai me furar mais cedo ou mais tarde e eu vou pro saco. Vou morrer mesmo e que se foda essa porra! Eu já tô ligado na dos vigia, quando começa a deixar uma multidão muito sozinha sem tá encima, só de longe pra fingir que tá ali, eu sei… um se vai. Semana passada foi Leleto. Porra o cara não bulia com ninguém, tava de boa esperando a condicional e aí inventaram que era cagueta e fodeu! 10 furo só no abdômen. Fora os hematoma. Deixaram o cara lá no chão como se fosse bicho, ou coisa pior. É assim, meu véi, aqui é foda! Foda pacarai!

E eu sei que tô fodido, doido! Porra, todo mundo já sabe o que eu fiz! Contaram, divulgaram, chegou no tribunal do crime e pronto. Fazer o quê? Um dia esse dia chegaria…

Chegou. E agora é só questão de tempo e enquanto isso tô aqui, descarrego um pouco no papel pra arejar as ideia.

De moleque eu curtia poesia, uns rap massa que tocava na casa de Gustavo, e tinha, porra Fernando Pessoa, foda pacarai, tinha Cecília Meireles, outra do caralho! E porra Raul Seixas, Legião Urbana, Racionais. Era o bicho! Só que tu tá ligado que tu não pode querer ser poeta demais ou estudar demais, primeiro porque tu não tem grana pra comprar livro. Ah, meu vei, uma vez inventei de comprar um livro de dois conto que tinha achado na rua, até hoje me lembro do título, Açúcar amargo, tinha duas boyzinha brigando na capa, eu comprei de um conhecido. Rapaz, pra quê! Quando painho soube que eu gastei dinheiro de comprar pão pra comprar livro, não deu outra! Pegou e pôs no fogão. E aí depois tirou e disse: dá pra comer dá? Hein? Fora que se eu achasse, ele pegava e levava pra reciclar. Painho era foda! E ainda tinha outro motivo: se tu lê, estuda demais, tu não come mulé não. E o que acontece? Tu leva fama de boiola, aí não dava né, boy? Então eu preferia ouvir um Racionais, um Martinho da Vila, um Bezerra, porra só as relíquias! E às vezes me aventurava em alguns versos que eu fazia escondido pros cara não ver.

Tinha uns que eu guardei. Mas não lembro direito. Nunca mostrei pra ninguém, tá ligado? Mas eu lembro da sensação de escrever poesia. É tipo assim, tu olha praquela lata de lixo (tem uma na minha frente agora), mas só que ela não é mais só aquela lata de lixo, é o lixo e a lembrança e o fedor, e a vida da gente que tá nessa merda do caralho e aí tu descreve a porra da lata de lixo e parece que aquela porra é única no mundo. E aí dá uma agonia do caralho, porque tu fica com aquilo na mente e se tu não escrever, fodeu! Não faz mais nada dereito. Nem foder, porque tu tas lá com a nega e a porra da lata de lixo não sai da cabeça.

Exagerei. To ligado. Mas sacou?

Eu sabia que gostava de Doninha porque quando eu tava perto dela isso me ocorria direto. Era só ela rir que, doido, já vinha título, verso, rima os carai a 4. Era só dizer oi que porra, eu virava Cazuza. Era ela andar que a minha vida virava qualquer livro possível sobre nós dois. E era lindo.

Um dia eu arrisquei escrever um verso pra ela, um dos muito que tava aqui dentro. Só que ela já tava com Cocada, tá ligado? E bicho, sabe aquela regra geral: Mulé de amigo meu, pra mim é home? Pois é, meu bom, tive que virar baitola, porque, bicho, dava não... e aí, só tinha a caneta na mão algum papel que eu fingia fazer as anotação do movimento na boca, enquanto eu desabafava tudo o que eu sentia. Mas aí eu escrevi, botei uma letra secreta que ninguém tinha visto eu escrever, e aproveitei o movimento pra botar perto do celular dela. Sem ninguém perceber, né? Porra, Cocada percebesse eu tava fodido! E aí quando ela voltou, deu de cara com o bilhete. Leu. Sorriu. Aí veio Cocada e leu também... os dois riram. Depois pegaram e colocaram baseado no papel e fumaram.

Nós tá fumando poesia agora! Tamo doidão de amor!

Eu fingi achar engraçado. Apenas fingi. Fingi bem até, mas doeu, boy! Doeu pacarai! E o pior era que a boyzinha que eu curtia era mulé do chefe, vei! Não do chefe dos outros, mas o meu! E fora que eles riram do que eu escrevia! Mesmo sem saber, aquilo foi como uma pesada que deram na minha cara. Cheguei em casa com o dinheiro do dia e o que eu fiz? Fumei e bebi pacarai. No outro dia uma ressaca daquelas e eu lá no ponto, fazendo as anotação, levando as broncas pra Cocada, botando algum terror na galera que não paga. E Cocada sendo o Rei dali do Alto do Pascoal, Alto Santa Terezinha e essas bocada tudo.

Só que a bronca foi depois e foi isso que me pôs aqui. Depois de umas duas ou três semanas, sei lá, eu fiquei sabendo que Cocada e Doninha tavam meio balançados. Eu sabia que eles não terminariam, porque ela era gamada naquele bicho, e eu sabia que Cocada também não iria largar. Mas tavam meio de bicão. Um pra lá, outro pra cá. Aí ele, pra provocar ela, saiu com uma amiga da escola, Karina, uma rapariga do carai, e ela ficou sabendo. Aí veio pro meu lado, vê só. Porra, eu podia ter negado né? Mas vai dizer que tu resistiria! Ela veio e foi logo matando.

Ei, Donda. Eu to ligada que foi tu que pôs aquele poema lá!

Que poema?

Ah, doido, quer se fazer de demente?

Não, pô!

Eu sei que foi tu. Eu vi quando tu botou. Não sabia que tu tinha letra bonita.

Aí, meu amigo, eu fiquei de tudo quanto é cor! E foi isso que deu na cara. E ela sacou! Só que aí ela foi além, começou a dizer que gostou, que era bom ver que por detrás da máscara de maloqueiro tinha alguém com coração. Essas coisa tudo. Resultado: levei ela pro beco e altos colado, a noite toda. Até que um dia rolou. Tipo, eles ficaram brigados uns 10 dias e nesses 10 dias Doninha foi minha. Até mostrei um caderno que eu tinha com umas poesias. Ela viu, e sorriu. E eu sorria junto.

Mas a merda mesmo foi que eles voltaram. E aí Doninha simplesmente fingiu que nunca me viu. E o pior, um mês depois disse que tava grávida. Cocada só faltou endoidar, fez churrasco, perdoou dívida. Falou que ia ser pai, me contou emocionado...

Foi então que eu disse que ia sossegar. Dava mais pra mim não. Ele entendeu. Sabia que eu não iria entregar os esquemas. Mas... e se o filho fosse meu e ela tivesse dizendo que era dele só pra segurar o cara? Porra, sabe como certas boyzinha pensa né? Teve um dia que eu cheguei nela e perguntei. E ela só falou: Não interessa!

Comecei a cheirar. Ficar doidão pelos canto. E o tempo passando e Doninha com o Bucho cada vez maior e eu sem saber se aquele bebê era meu ou não. Aí veio aquele dia...

Eu tinha cheirado mais do que tudo. Cocada tinha sido preso. Tava lá na puta que pariu, e Doninha solteira. Aí eu vi ela, mais a mãe e o irmão. Disse:

Doninha, tu vai pra onde?

Pro hospital, to com contração. Cocada vai ser pai.

Mas essa criança é minha!

Me deixa em paz, Donda! Perdesse!

Foi aí que eu não vi mais nada. Tava com o revolver e... pronto. Eu só sentia o dedo apertando o gatilho e aí me dei conta. Matei ela. E o que o cara pensa na hora do desespero? Vou me matar também. Quando eu ia atirar em mim também, os caras me dominaram. Depois só lembro de tá no hospital com os pés algemados e dois policial do meu lado. Quando perguntei o que aconteceu, só disseram que eu tinha o direito de ficar calado. Aí caiu a ficha. Nunca matei ninguém, mas matei a menina que me fazia escrever poesia. E a lembrança disso é o fantasma que me assola…

Por isso não ligo se vão me matar... eles vai. Mas quando viver doi mais que morrer, tu vai fazer o quê? Eu apenas espero o cumprimento da sentença.