280 - A Leitura

Provou o chá, encostou-se ao conforto do sofá, abriu o livro. Lá fora o maior barulho deixou de se ouvir e apenas se percebia o relógio antigo a tiquetaquear a indolência. Talvez pudesse adormecer por ali. A história que lia arrastava-se há semanas no mesmo passo sem mistério. Era dos que, à falta de estímulo, ia até à última página para perceber o desfecho mas voltava ao princípio para reencontrar o caminho da narrativa. Nesta obra o começo era vago e as cenas incluíam muita gente. Foi preciso chegar à página vinte para perceber que o homem ia falar e que, no que ele dissesse, estaria, finalmente, o início de uma história. Ergueu-se, colocou a mão no microfone, olhou feroz a assistência e clamou de modo a não deixar dúvidas, que todos por ali não passavam de hipócritas. A seguir alguém desligara a luz e o som tornou-se aquele rumor que ele, aos gritos, raspava para se fazer ouvir nos impropérios seguintes. Quando a luz voltou já o homem que insultara não estava e alguém deu seguimento aos trabalhos que continuaram a fazer a história desinteressante. Caiu-lhe o livro das mãos, tombou sobre o ombro a cabeça e resolveu trazer o interventor à Sala Nobre da Câmara. Chegou agora mudo, abriu o casaco, agarrou no revolver, disparou para o lustre, sentiu pesado o silêncio e disse: - Ainda tenho cinco balas no tambor da arma mas há muito mais que cinco a pedir um tiro. Vim por justiça, não para a fazer eu. A seguir, acordou, espreguiçou-se e disse para consigo mesmo: - Amanhã leio outro livro!

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 20/09/2020
Reeditado em 20/09/2020
Código do texto: T7067593
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