Acordei atordoado, à procura dos meus óculos que deveriam estar no criado mudo. Por que repeti novamente essa expressão? Não consigo me habituar a usar a mesa de cabeceira, mas não posso ser laçado pela ignorância, afinal para mim esse móvel não tem nada de escravo do século passado.
Pensando bem, criado serve como uma bengala, de certo modo um escravo estático. O que seria um escravo estático? Uma estátua para pendurar as roupas retiradas, prender o espelho e ser testemunha silenciosa das reclamações particulares? O que é estático, afinal? Repouso, sem movimento, equilibrado? Deixa pra lá essa história de criado... 
Achei os óculos e com ele um fone de ouvido sem ponteira, é a terceira que some em menos de 7 dias. Deve ter algo que explique essa minha mania de perder as coisas, como se não pudesse  possuí-las, é uma espécie de aversão à propriedade.
Talvez por isso não seja dono de nada. Talvez de um nome, sobrenome e uma profissão. Mas quem precisa mais do que isso para sobreviver. Um nome para ostentar nas relator convivência, um sobrenome que conte minha história e tradição cultural e um trabalho que me inspire. Claro que o pro bono me agrada, mas para pagar as contas que se avolumam sobre a mesa de ferro. Essa mesa de ferro é uma espécie de instrumento cujo teor físico me impulsiona a ser forte. Escovei os dentes com bicarbonato de sódio, tenho dentista hoje a tarde, toda sujeira acumulada se despede e pareço um cara cuidadoso, apesar das inúmeras vezes que saí sem escovar os dentes e sem usar o fio dental. Uma trégua. Todos somos assim, estamos assim. Hoje o dia está pesado, café será na esquina, tenho que atender uma paciente que por causa dos sonhos recorrentes de suicídio, resolveu se aventurar numa tentativa frustrada. Ela não consegue se convencer de que é um ser por si só, sim! Ela perdeu o noivo num acidente de carro, em que era a motorista, a culpa nesse caso, veio como pena de morte. Mas convencê-la de que não precisa praticar em si, é um desafio. Já a vejo entrando: coque no cabelo, camisa de banda de rock romântica (ameaça) e o moletom que Erick morreu. Ela não apenas se pune, mas acredita que é uma espécie de encarnação do rapaz, e apaixonou-se por si. Dupla personalidade. Quem vai na minha sala hoje? O divã será o rosa? O dia está começando... 
Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 18/09/2020
Reeditado em 23/09/2020
Código do texto: T7066599
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