ME AMPUTARAM (5 vidas - 1 parte II)
Eu agora dei de dormir com a boneca dela, moço. Tento porque é um dos pouco objeto que ainda guarda o cheirinho dela, sabe. Eu sei que de tanto dormir com a bichinha ela vai acabar ficando com o meu… mas fazer o que né? Não tem como o cheiro permanecer pra sempre. Os lenços e os lençóis já se foi tudo. As roupa também. Meu menino mais velho doou. Disse que roupa sem vestir era disperdiço. Eu chorei quando cheguei em casa e vi a gavetinha dela vazia. Até tentei brigar, mas sabe como é. Errado eles não tá. Eu que que tô nesse mato sem cachorro… eu sei.
Os remedio?
Tenho tomado não. Pra quê? Pra ficar com a boca amargando e aqui dentro sem nada? Porque aqui, moço, tem mais nada não. Os dia é tudo a mesma coisa. Dormir, só quando bota remédio escondido, mas nem adianta porque eu acordo logo e aí me agarro com alguma coisinha dela e fico lá, as lágrima seca. Faz tempo que desaprendi a chorar. Sabe quando tira algo da gente? É isso.
Quando aquele abençoado deu aqueles três tiro eu caí mulher e acordei tábua. Ver ela naquele IML e depois no caixão doado pelo vereador, porque se fosse pela gente, meu fi, ia ser enterrada na rede que nem os antigo, foi como morrer pra mim. Eu morri ali. O povo até estranha que eu não tenha me matado. Mas tem como matar um defunto, tem? Não tem! É uma defunta que anda, só isso.
Ás vez eu alevanto. Tento fazer alguma coisa. Só que já tá tudo feito. O povo lá de casa meio que entendeu já. E aí eu volto pra cama e fico lá. O dia, a noite, o dia… aí depois a mesma coisa.
É isso.
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Eu comprei essa boneca quando Doninha tinha de 7 pra 8 ano. O pai dela tinha brigado comigo. Disse: agora nós tá cagando dinheiro pra comprar boneca Joana? Pensa que eu respondi alguma coisa? Falei foi nada. É que eu sabia que aquela boneca tinha que ser dela. Como? Sabendo, oxe! Ah, moço, coisa de mãe é coisa de mulher, a gente sabe das coisa.
Eu só sei que quando aquela criatura pegou essa boneca foi um Deus nos acuda. E apertava, abraçava e dava xeru. Chamou de Florzinha. E aí de quem bulisse, tá? Ah, meu fi, aí ela virava um siri na lata! Pense! Xande levou até murro no olho por causa dessa Florzinha. E eu pude dizer o quê? Mandei ele deixar de ser besta e brincar com os brinquedo dele. Onde já se viu home brincar de boneca?
Mas quando eu via ela abraçada, dormindo e às vez até sorrindo, eu sabia que eu tava certa. E mesmo quando o bucho começou a crescer e ela pôs tatuagem e furou a orelha, a venta, a sobrancelha e até o priquito, ela tava lá agarrada com a Florzinha.
Teve um dia que foi engraçado. Doninha lá vendo as roupa da bebezinha e de repente ela chutou a barriga. Doninha pegou a boneca e pôs pra abraçar assim, como se fosse uma pessoinha pequena. Ainda fez vozinha, Titia Flor tá te abraçando, visse mainha?
Agora pense. Eu que nunca tive herança nenhuma pra dar e o brinquedo da minha filha agora seria da minha neta. Seria, né, seria…
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Sobre Cocada? Eu não sei dizer o que eu sinto não. Hoje acho que já não sinto é nada. Sabe nada? É isso. Nada.
Eu não acho que tenha sido ele não. Disseram. Mas não tem cabimento. Foi Donda e por ruindade mesmo. Desde pequeno era assim. Ruim que só uma peste. Vevia arrumando confusão por causa de bola de gude, pipa, até fruta que nem era dele, era roubada lá do sítio de seu Iraildo. Foi Donda e porque ele quis. Pronto e acabou-se!
Cocada era ruim também, mas só com os outros. Com Doninha ele era uma moça de tão caprichoso. Dava de tudo e respeitava nós. Quando minha menina embuchou, o homem ficou foi alegre. Soltava fogos. Queria que fosse menino. E ai começou a me chamar de mainha. Eu sabia que ele era errado. Sabia que tinha morte nas costa e que se o sujeito desse ponto fora da linha era só um na cabeça. Mas na frente da gente, não sei. Parecia outro. Não sei… Quando Doninha apareceu com a primeira ultrassom ele chorou. Tu já visse matador chorando? Não? Pois eu vi, moço, com esses dois olho que a terra vai comer. E pensei: mulher, a gente veve uma vida toda e não vê nada, viu?
Só que ele era errado... as companhia, os jeito. No fundo ele gostava dessa moral, como eles diz lá no meio deles. É claro que ele era legal com nós aqui no bairro! Ser legal faz parte do jogo. Mas mexe pra tu ver. Eu desaprovava.
Por que não proibi? Moço e pai e mãe de hoje consegue proibir nada? Aí era pior porque ela saia de casa e nunca mais aparecia. E sabe-se lá que destino teria tomado.
É. Como se isso fizesse alguma diferença hoje.
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Eu não choro porque não consigo sentir mais nada. Só consigo rever dentro dos olhos aquela cena de Donda apontando o revolver pra nós. Todo santo dia e não tem dia santo que eu não veja. É foda, moço, desculpe o linguajar, mas é só essa palavra que me vem. É foda!
E a bichinha lá com as contração tudo, mas feliz, ao mesmo tempo preocupada com a bebezinha. Pensa que triste. Nadar tanto e morrer na praia, naquele mar de sangue. E Donda todo alterado.
Ei, Doninha, tu vai pra onde?
Tô com contração, vou na UPA!
Ah, é? Então tu vai é agora!
Aí, moço, eu só vi o primeiro. Os outros soube depois. Xande viu tudo. O resto… bem, o resto apareceu no jornal, os outro já falaram. É isso…
Como falei, hoje de tanto lembrar, não doi mais. É como se tivesse me amputado um braço, uma perna. Acho que me amputaram a parte que sentia tristeza.
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Xande diz que não, mas quando ele se amigou lá mais aquela mulher dele e de repente a menina apareceu grávida, eu soube que aquilo era pra me dar um neto. Ele foi tão forte, moço… mas eu sei que até hoje ele não se abriu com ninguém. Eu vejo. Quando ele vai lá cuidar de mim e para um bocadinho, as perna não para de balançar. Quase nunca sorri. Eu vejo.
Só que ele quer me dar um neto ou neta. E o que eu posso fazer? Amar? Não consigo. Meu marido é que ta ansioso. Deu fralda, chupeta e tudo. Conseguiu na Igreja. Pois é, agora é crente. Outro dia trouxe uns irmão pra orar por mim. Oraram. Eu aceitei, um se pôs a falar em línguas, outro disse que Jesus cura, outro me abraçou. Saíram dizendo que Deus é bom e eu continuei lá no sofá.
Curar…
Se minha filha tivesse viva não tinha o que curar… agora é que não tem mesmo.
To vivendo... que venha com saúde a criança de Xande, mas eu…
Deixa pra lá.