O MENINO DO PASSADO

Era início da década de setenta, Julinho, um garoto peralta de 13 anos, gastava toda energia de sua juventude nas brincadeiras com seus coleguinhas. Pela manhã, seu pai o acordava cedo, mesmo sob protesto, para ir à escola. O menino pegava sua bicicleta e atravessa a pequena cidade para ir à escola pública. No intervalo da aula sempre brincava de futebol com os coleguinhas. Ao voltar da escola, banho e almoço. E não adiantava reclamar, a mãe não dava moleza. À tarde, depois do almoço, fazia as atividades e estava liberado para voltar a brincar com os colegas. Alguns dias ia tomar banho na prainha do rio que corta a cidade; noutros se aventurava nas trilhas das serras em volta da cidade. Às vezes ia pescar nos lagos dos arredores. A lei era estar em casa às 18:00.

Certo dia, Julinho saiu de bicicleta à tarde, junto com os colegas. Por uma fatalidade, sofreu um acidente. Caiu da bicicleta, bateu com a cabeça no chão e desmaiou. Foi um alvoroço. Os colegas avisaram à mãe de Julinho que foi às pressas pega-lo para levar ao hospital. O médico, um amigo da família, fez os primeiros exames e avisou aos pais que Julinho estava em coma. Mandaram ela para o hospital da capital, mas os médicos não encontraram nenhuma forma para reverter o quadro. Aguardaram um mês, dois meses... o tempo passava e Julinho não saia do coma. Transferiram para casa onde o médico da família ia visita-lo constantemente. Sua situação permanecia sempre a mesa, não se agravava, mas também não melhorava. No início os coleguinhas iam visita-lo e até conversavam com ele. O tempo foi passando, as visitas foram se rareando, até mesmo o médico diminuiu suas visitas. Avisou à família que se acontecesse alguma anormalidade, era para avisá-lo.

Um detalhe intrigante era que o tempo passava e Julinho continuava com a mesma estatura e o mesmo semblante. Passaram se anos. Todos voltaram ao seu cotidiano, seus coleguinhas cresceram, seus pais envelheceram, novos parentes apareceram. Cinco, dez, vinte, trinta anos se passaram. Numa tarde qualquer, Julinho, do nada, abre os olhos. No quarto só estava ele, vestido em um pijama, um soro no braço, uma cadeira de descanso ao lado da cama, e um quadro preto, estranho, pendurado na parede. Julinho achou tudo aquilo estranho. Chamou pela mãe.

Na sala ao lado do quarto a vida transcorria normalmente, quando se ouviu um chamado do quarto. Dona Júlia, uma senhora já de uma certa idade, que estava no sofá com uma criança no colo teve um sobressalto. Chamou a filha que estava na cozinha.

- Edite, você ouviu?

- O que mãe?

- Julinho me chamou...

- A senhora devia estar cochilando e sonhou...

Mais uma vez o chamado do quarto.

- Mãe...

As duas se olharam. A mãe perguntou.

- E agora?

- Vai lá mãe...

- O que eu digo?

- Sei lá, deixa ele perguntar.

- Liga para o Dr. Geraldo e pede para ele vir rápido, eu vou lá.

A senhora vai apreensiva, abre a porta devagar e entra.

- Jujú...

- Vó?

- Não Jujú, sou sua mãe...

- Deixa de brincadeira vó, chame minha mãe...

- Jujú, eu sou sua mãe...

- Mas como a senhora envelheceu assim?

- Olha Julinho, precisamos conversar.

- Eu não tô entendendo nada...

- Você lembra que caiu da bicicleta?

- Lembro sim, eu ia pra cachoeira junto com o Tuca e Alex. Eu caí da bicicleta e acordei aqui.

- Pois, é você bateu a cabeça e ficou inconsciente...

- Eu lembro vó, quer dizer mãe... Mãe, é a senhora mesmo?

- Sou eu sim, vamos lhe contar o que aconteceu, o Dr. Geraldo já está vindo...

- Ele não vai me dar injeção não, vai?

- Fique calmo filho, vamos conversar, você lembra do acidente?

- Lembro mãe.

- Pois é filho, desde o acidente até hoje já se passaram mais de trinta anos.

- Trinta anos, como assim?

- Como é difícil e explicar. Tenha paciência, o doutor está vindo, seu pai chega do trabalho daqui a pouco. Nós vamos lhe explicar tudo.

- A bicicleta estragou muito?

Nesse momento Edite entra no quarto.

- Mãe, já chamei o doutor, ele já está vindo. Oi Jujú.

- Quem é ela?

- É Edite, sua irmãzinha, lembra dela?

Chama a mãe para perto.

- Mãe, a Ditinha ainda está aprendendo a andar. A senhora está bem?

- Jujú, fique assistindo televisão que eu já volto.

Pega o controle e liga a TV. Julinho fica maravilhado.

- Mãe, parece o cinema, só que a tela é pequena. Como a senhora ligou daqui?

- Fique aí assistindo, nós voltamos já.

Sai com a filha.

Julinho estava perplexo diante daquela televisão estranha, pendurada na parede, e ainda mais com imagens coloridas. Apesar de pequena, a qualidade era tão boa que parecia com o cinema onde ele assistia filmes de cowboys nos domingos à tarde com seus colegas.

Logo o médico, um senhor idoso, chegou e elas o colocaram a par dos acontecimentos. Ele entrou no quarto seguido por Dona Júlia e Edite.

- Boa tarde Julinho. Como você se sente?

- Boa tarde doutor, eu tô bem. Só esse soro chato no meu braço. Eu tô com sede e com fome.

- Tenha paciência, você vai comer e beber, mas com calma, faz muito tempo que você está nessa cama.

- Minha vó, que tá dizendo que é minha mãe, diz que faz trinta anos que estou aqui.

- Preste atenção, é verdade que ela é sua mãe, e é verdade que faz trinta anos que você está aqui.

- O senhor parece com o Dr. Geraldo. O senhor é pai ou avô dele?

- Eu sou o Dr. Geraldo. Quando você sofreu o acidente eu era bem mais novo. Aconteceu um fato raro com você. Depois do acidente você entrou em coma e não envelheceu.

- O senhor quer dizer que eu fiquei desmaiado esse tempo todo?

- É mais ou menos isso. Olha, você vai estranhar muita coisa. O tempo passou e aconteceram muitas mudanças daquele tempo pra cá.

- Essa televisão mesmo é um barato...

Neste momento Roberto, o pai de Julinho, entra no quarto. Julinho olha pra ele.

- Vovô?

Dona Júlia fala.

- Não Juju, é Beto seu pai...

- Para de brincadeira Vó...

O médico fala.

- Julinho, sei que é confuso, mas como lhe falei, o tempo não passou para você, mas passou para todo mundo. Esse é Beto, seu pai, essa é Júlia, sua mãe, e essa é Edite, sua irmã...

- Tá tudo meio doido...

- Você vai precisar de um pouco de tempo para se acostumar...

O médico aplica um liquido no soro e logo Julinho dorme. Todos saem do quarto. Ficam conversando na sala. O médico orienta como devem agir.

- Vocês têm que ter paciência. Aos poucos ele vai se adaptando. Vão mostrando fotos, vídeos da família. Amanhã ele já deve sair do quarto. Apresente o Guto para ele, são da mesma idade. O Guto vai ajudá-lo nessa adaptação.

Gutemberg é filho de edite e tem a mesma idade de Julinho na época do acidente. Assim que Guto chega da escola, a mãe o coloca a par dos acontecimentos.

No outro dia todos estão reunidos na sala quando dona Júlia traz Julinho. Andando ainda devagar ele senta-se no sofá.

Edite apresenta os filhos para Julinho.

- Julinho, esse é Guto e essa é Clara. São seus primos. Julinho os cumprimenta timidamente.

- Oi...

- Oi Julinho, que bom que tu já tá bom.

O pai fala.

- Filho essa é sua casa, todos nós estamos felizes pela sua melhora. Vamos esperar você se recuperar mais um pouco para a gente dar umas voltas por aí e depois vamos lhe matricular na mesma escola de Guto.

A mãe fala.

- Jujú, fiz aquele bolo de cenoura que você sempre gostou, mas Dr. Geraldo disse que tem que comer pouco. Fiz suco de maracujá também. Vamos para a mesa.

Julinho demostra sua curiosidade perguntado sobre tudo. Na cozinha ele vê o micro-ondas funcionando e comenta.

- Que forno estranho... e esse fogão, não precisa de fósforo?

Na sala continua perguntando sobre tudo.

- Como vocês ligam a televisão e aumentam o som sem sair do sofá? Esse telefone sem fio funciona como?

Os dias vão passando e, com paciência, todos vão explicando as coisas.

Guto resolve chamar Julinho para jogar futebol.

- Vamos, eu fico no gol. Onde é o campo?

- Não é no campo não Julinho. É na televisão, eu fico com um controle e você com outro.

Julinho acha estranho, mas tenta jogar. Depois que terminam Guto pergunta:

- E aí, gostou?

- Eu prefiro futebol de verdade. Ali perto do rio tem um campinho, vamos jogar lá?

- Não existe mais campinho ali não, agora é um shopping.

- Shopping?

- Sim um prédio cheio de lojas, tem até cinema.

- E o rio, vamos tomar banho lá?

- Você tá doido, é muito poluído, se botar o pé lá dentro já sai doente.

No outro dia a família leva Julinho para dar uma volta pela cidade. No retorno sentam-se no sofá e o pai pergunta.

- E aí Julinho, o que achou do mundo atual?

- Tem muito carro e motos nas ruas, pai. Tudo é muito barulhento. Nessas ruas não dá nem para andar de bicicleta. As pessoas passam pelas outras e nem se falam. É tudo muito doido, eu prefiro o meu tempo.

- Seu tempo agora é esse meu filho. Amanhã você vai com Guto para conhecer a escola dele.

No outro dia Julinho e Guto chegam da escola. Todos estão apreensivos para saber o que Julinho achou. O pai perguntou.

- E aí Julinho, o que achou da escola?

- Pai é muito diferente da minha escola. Tem umas coisas boas, bibliotecas, televisão, todo mundo com farda bonita. Mas também tem coisa ruim, eles tratam mal os professores, e os professores nem dão umas palmadas neles. No recreio cada um fica em um canto com seu telefone sem fio.

- Mas é assim mesmo filho, depois você se acostuma.

- Tem coisas que eu não vou me acostumar não, pai.

- No final de semana nós vamos visitar sua avó e seu avô na roça. Você lembra da roça de seu avô?

- Lembro sim, eu quero ir.

Depois que retornaram da roça eles notaram que Julinho ficou um pouco diferente. Todos estão juntos na sala e notam que Julinho está isolado, calado em canto. O pai se aproxima. E puxa conversa.

- Filho, o que houve, por que você está assim, triste pelos cantos?

- Pai, o senhor gosta de mim?

- Claro filho, todos nós te amamos, todos ficamos felizes com sua recuperação. Por que?

- Pai eu não me acostumo com esse mundo novo. Ontem eu vi na televisão que tocaram fogo em uma pessoa que morava na rua. Outro dia roubaram o ônibus que todo dia passa aqui na frente. Ontem saiu a notícia de que uma criança morreu com uma bala perdida numa briga da polícia com os bandidos. Eu já tô com medo de sair na rua.

- Filho, infelizmente esse é o mundo em que vivemos, temos que aceitar. O que poderíamos fazer?

- Pai, me leva para o passado.

- Como assim filho? Isso não é possível...

- É possível sim pai...

- Como filho?

- Me leva para eu morar na roça com meu avô e minha avó...

Ivan Aquino
Enviado por Ivan Aquino em 09/09/2020
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