Pequenas histórias 204

O dedo.

A tesoura atravessou o dedo de lado a lado. Entrou pela direita saindo pela esquerda. O sangue esguichou manchando os papeis e a mesa branca de vermelho quente e gosmento, como num filme de Quentin Tarantino. Ele não emitiu nenhum som, nem um "aí", ninguém ouviu nada, apenas perceberam quando o corpo se inclinou para o lado quase caindo da cadeira de estofado cinza surrado.

- Segura, não deixe cair.

- Tiram a tesoura do dedo.

- Não tiram. Vocês não sabem se pode cortar mais ainda.

- Tragam papel para enxugar o sangue.

Um correu até o banheiro e voltou com pacote de papel que esparramou por cima do sangue. O que não adiantou nada.

- Se afastem, deem espaço, por favor.

- Coloquem papel no dedo dele.

- Não resolve.

- Alguém liga para o médico, gritou uma voz esganiçada.

Pegaram a lista e não conseguiam achar o ramal do médico.

- Vai alguém lá embaixo chamar o médico, disse outro.

Saíram correndo escada abaixo.

- Olha ela, está passando mal, tiram-na daqui.

- Que coisa! Grávida curiosa sai daqui.

Nisso o médico chegou.

- Onde está o rapaz que cortou o dedo.

- Aqui doutor.

- Nossa que sangreira! O que aconteceu?

- Não sabemos, doutor. De repente ele estava desmaiado com a tesoura atravessado no dedo.

- Ele tinha o costume de tirar os grampos dos papéis com a tesoura.

- Não usava o extrator de grampos, não?

- Usava, mas tem uns papéis, esses processos grandes, vem grampeado com um grampo grosso que o extrator não consegue tirar.

- E aí ele usava a tesoura.

- Isso mesmo, doutor.

- É preciso tirar a tesoura.

- Quer ajuda, doutor?

- Vou precisar sim.

Abriu a maleta e tirou os instrumentos.

- Por favor, alguém segura o dedo assim. Isso. Agora vou alargar o corte e você puxa a tesoura, certo?

- Certo doutor.

O médico enfiou a lanceta entre a carne e a tesoura e ergueu para cima dando espaço para tirar a tesoura.

- Pronto. Pode puxar a tesoura.

Dali um minuto a tesoura tinha sido retirada.

- Agora precisamos levar para um hospital.

- Se ele acordasse...

- Olhe ele está voltando a si.

Aos poucos ele foi abrindo os olhos.

- O que aconteceu? O que houve? - perguntou desorientado.

- Não aconteceu nada. Precisamos levar você a um hospital, pode caminhar?

- Hospital? O que aconteceu?

Nisso ao ver sua mão enfaixada, o sangue manchando a gase que o médico colocara, desmaiou novamente.

Duas semanas depois ele saia do hospital. Chegando a casa, a mulher lhe perguntou:

- E o que médico disse?

Ele olhou para o dedo em riste, o indicador da mão direita, respondeu:

- A tesoura cortou os nervos do dedo e não foi possível recuperá-los.

- E o que isso quer dizer?

Sorrindo com a mão fechada e só com dedo duro apontando para o nada, disse com um ar malicioso:

- Isso quer dizer que meu dedo perdeu os movimentos, não dobra mais, ficará assim duro para sempre.

E ao mesmo tempo em que falava, chegou perto da esposa e a abraçou por traz deslizando o dedo entre suas coxas.

A mulher lhe deu um safanão:

- Seu porco nojento, não tem vergonha não. Não encoste esse dedo sujo em mim senão eu o corto.

E se trancou no quarto deixando-o abestalhado no meio da sala.

Pastorelli
Enviado por Pastorelli em 09/09/2020
Código do texto: T7058636
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