289 - Inverno
Há dias que caía, fina, uma chuva assim. A humidade entranhava-se nos ossos, os dedos inchavam com frieiras e o frio, que os velhos diziam mais brando, doía como antes da chuva onde tivesse articulações. Para poupar as moedas subia os Lóios apeado da bicicleta e levava os pés embrulhados em jornais. Não era dali e aceitava todos os conselhos para diminuir o frio implacável que atravessava a roupa e o fazia enterrar o chapéu até onde fosse possível. Na volta, com a carga entregue, já montado, sentia fino o vento bater no rosto vermelho e deixar quase quebradiças as orelhas. Pagaram-lhe. O rolinho das notas acantonara-se-lhe no bolso e raspava-lhe a pele sensível sempre que pedalava. Apeou-se à porta do Café Académica e pediu que lhe trouxessem uma garrafa. Pagou e seguiu até à casa onde alugara o quarto. Tremeu até acertar com a chave na abertura, fez ranger os degraus da escada de madeira, entrou no sótão, fechou a janela da trapeira que a velha sempre deixava entreaberta e, despindo o casaco, praguejando contra o tempo, decidiu que voltaria a África logo que pudesse trabalhar num paquete de carga ou passageiros, tanto lhe dava. Já deitado, bebeu, trago a trago, o vinho todo e adormeceu vestido. Quando chegou a carta com a data de partida do barco e o local da Rocha de Conde de Óbidos onde estaria fundeado, cresceu-lhe uma alegria enorme e deixou de sentir o frio. Sangrava os beiços sempre que se ria, voltava a rir-se confirmando no jornal a data certa. E, um dia, pegou na mochila e viajou para embarcar. De Leixões enviou um postal a despedir-se. Quando da escotilha viu os flamingos ao longe soube que chegara ao Lobito.