ENTREVISTANDO RAIMUNDO PAULO

Morgana se aproxima de Raimundo Paulo que ainda se espreguiçava em sua cama e pergunta se depois daquele ano tão conturbado, ele já estaria disposto a contar a sua história.

Ele sorri com o canto da boca, estica as patas mais uma vez e balança as suas longas orelhas, e fala que pode sim.

Ela imediatamente se ajeita em uma almofada, dá um belo sorriso e com os olhos brilhando diz que quer saber a história dele desde do início.

Ele toma um pouco de água, e sentando em frente a ela, começa:

- Me deram o nome de Raimundo Paulo, não sei bem o porquê. Sou um cão vira-lata de porte médio e pelo preto e ondulado. Nasci e cresci na Universidade, junto de mais sete irmãos.

Infelizmente, seis dos meus irmãos não sobreviveram. Alguns foram mortos por cobras e outros por urubus, restando só eu e minha irmã Belinha. Antes, eu ficava arrasado de falar sobre isso. Hoje não fico mais tão mal, porque muito tempo já passou.

Um dia o bom Deus dos cachorros, trouxe uma moça bondosa que levou a minha irmã para um lar de verdade. Fiquei triste e feliz. Triste, porque continuei na Universidade, sem um tutor, sem uma casa para chamar de minha, e com saudades de minha irmã. Feliz, porque sei que ela finalmente ganhou um lar, uma caminha confortável e uma humana que deve amá-la muito. Às vezes as imagino, uma dormindo bem juntinho da outra, sentindo o calor e o carinho.

Cresci no meio de muitos outros cães que na Universidade residiam e alguns ainda residem, e fui incluído na mesma matilha a qual minha mãe pertencia.

Minha mãe já não está entre nós, pois um dia um carro veio em alta velocidade e bateu nela. Acho que o motorista pensou que aqui era pista de corrida. Tudo aquilo me deixou lastimoso, pois a minha mãe não teve nenhuma chance. O carro fugiu e umas pessoas legais até tentaram salvá-la, mas era tarde. A pancada foi grande e ela não era jovem. Chorei muito, mas, sei que ela está no céu dos animais e que está sendo bem cuidada agora.

Quem me deu o nome de Raimundo Paulo foi uma mulher do Projeto responsável pelos cães e gatos da Universidade. Essa senhora simpática e amável que nunca negou um abraço, nem um carinho. Se alguém não estava bem, ela dava remédio para curar. Um anjo da guarda dos cães e gatos da Universidade. Por isso, tenho tanta gratidão por ela.

Lembro que alguns davam trabalho para tomar o remédio, aí ela corria atrás da gente e na maioria das vezes ganhava. Às vezes, nos mimava com petiscos ou um frango cozido, que era da hora. Apesar dos medicamentos não serem gostosos como queríamos, nós sabíamos que ela só desejava o nosso bem.

De vez em quando ela pegava uma das fêmeas e levava por uns dias e, quando retornavam, estavam diferentes, não podiam ter mais filhotes, o que de certa forma era bom, porque lá já tinha muitos cães, nem sei dizer quantos.

Na minha matilha, além de mim, tinha o Geraldo, o Chicão, a Lulu, o Teco-teco e o Tornado, e, juntos demarcamos o nosso lugar na Universidade.

Geraldo era o mais velho. Muito sisudo e desconfiado, não deixava de jeito nenhum pegarem nele. Acho que era algo do passado dele, mas ele nunca foi de muita conversa. Tempos depois, ele me confidenciou em uma noite que estava a olhar a lua cheia, que nascera no abrigo da Universidade, e muito jovem ainda, havia sido adotado por um casal muito simpático. E que ele ganhou uma caminha, pratinhos e brinquedos, mas, de repente, o casal o devolveu, alegando que ele latia muito e mordia sapatos. Geraldo ficou muito triste em voltar para a Universidade e, desde então, deixou de confiar nos humanos. Ele nunca mais foi adotado e fechou seu coração para não sofrer outras desilusões. Aquela noite foi a primeira e última que tive a oportunidade de ver lágrimas nos olhos de Geraldo.

O Chicão sempre foi o maior, mais forte e corajoso. Ele era divertido e brincávamos muito de correr. Ele não nasceu na Universidade.

Contou, certa vez, que morou em uma linda casa, com tutores, comida gostosa e uma caminha para dormir. Porém, certo dia, o tutor o colocou no carro e quando chegou próximo a Universidade, ele abriu a porta, disse para o Chicão descer e esperar.

Chicão esperou por muitos dias, com fome e sede, na chuva e no sol, noite e dia, até que o Geraldo o viu e o chamou para morar aqui.

Chicão não gosta mais de falar sobre isso, ele nunca entendeu porque seu dono não voltou. Não sabe o que fez de errado para ter sido abandonado. Ele diz que é feliz e que não pensa mais nos seus antigos humanos, mas, lá no fundo, acho que ele ainda espera o carro voltar, pois por diversas vezes, eu vi que quando passa um carro vermelho, ele para o que tiver fazendo e fica olhando para o carro.

A Lulu, assim como eu, nasceu aqui. Nós amamos correr pela grama e rolar nela, tomar água na beira do rio e contar as estrelas do céu a noite.

A Lulu me falou que cada estrela é um animalzinho que partiu da terra e, agora, fica lá nos iluminando e piscando para nós.

Ela tinha um irmão que era surdinho, mas era super alegre e brincalhão. Ele adorava humanos, carinho e gostava de caçar. Apesar de não escutar, ele sentia o som dos movimentos. Era muito legal.

Um dia, comeu um sapinho que tem aos montes na Universidade, e morreu dois dias depois, sem comer ou beber água, pois não conseguia mais.

Desde aquele dia, ela se juntou a nossa matilha, mas sempre manteve um focinho sorridente.

O Teco-teco e o Tornado acham que são irmãos. Eles não lembram de muita coisa, só que um dia, ainda filhotes, encontraram os portões da Universidade, entraram e se juntaram ao grupo.

Não sabiam dizer se tinham casa, outros irmãos ou se a mãe os abandonou. A única recordação é que chegaram em uma noite escura e sombria. Os dois são muito unidos e adoram aprontar com os outros animais.

Eu também fiz amigos humanos, como o Arinaldo. Ele era o segurança do portão 2, e tinha carinho por mim, desde que eu era pequenino.

Para mim, ele sempre trabalhou lá. Certo dia, ele me chamou e resolvi me aproximar, ele me deu um osso de galinha e, depois, fez carinho na minha cabeça. Desde então, ficamos bons amigos e conversamos bastante.

Não sei se ele me compreendia, mas eu com certeza, o entendia. Ele costumava deixar um pouco da sua comida para mim, fazer carinho, brincar e me dava água.

Eu sempre gostei muito dele. Até sonhava que ele me levaria para a casa dele, mas, ele não dizia nada sobre isso. Talvez não tivesse espaço para mim. Morasse em uma casa tão pequenina que mal cabia ele. Mas o importante era que ele sempre foi carinhoso e sorria ao me vêr.

O Arinaldo tinha uma pequena televisão, então, as vezes, eu aproveitava para assistir com ele os programas. Os preferidos dele eram os de notícias, principalmente os policiais. Ele xingava, gritava e discutia comigo sobre o assunto. Achava tudo o máximo, porque me fazia sentir importantíssimo, pois ele dividia os seus pontos de vista comigo.

Eu e minha turma nos abrigávamos debaixo de um prédio próximo ao rio, lá era fresquinho e tínhamos uma cobertura para dormir e não pegar tanta friagem.

Um lugar maravilhoso para se viver, no entanto, quando a chuva chegava, complicava um pouco, por causa da areia que ficava úmida, e só nos restava tentar encontrar outro canto. Mas, o importante mesmo é que tínhamos uns aos outros e juntos nos protegíamos do frio das noites, o que acabou por nos tornar uma família, que cuidava e se importava uns com os outros.

Não morávamos sozinhos na Universidade, pois existiam muitos outros animais como cobras, lagartos, pássaros dos mais diversos, gatos e outros. Porém, de todos eles, os que mais nos atormentavam eram os pombos.

Eles eram muito intrometidos e viviam tentando roubar nossa comida. De repente desciam em um grande bando e ficam rondando até conseguirem algo. Corríamos em direção a eles para pegá-los. No entanto, decolavam ligeiro para o céu, faziam uma volta e vinham de novo com todo gás.

Essa doidice acabava se tornando uma brincadeira bem divertida as vezes. Eu e Lulu amávamos essa diversão.

O fato é que nem mesmo os urubus nos perturbavam tanto como os pombos. Destes, na verdade, eu tinha muito medo. Pois sempre que os olhava, lembrava de como eles haviam atacado os meus irmãos e os feriram, fazendo com que alguns adoecessem e acabassem morrendo, e então, aqueles malditos voltaram e os comeram. Foram tempos terríveis e minha mãe não conseguiu fazer nada, o que a fez chorar horrores.

Eu, Belinha e mais dois irmãos escapamos dos urubus. Só que, depois, meus dois irmãos foram mortos por picada de cobras venenosas.

Restou eu e Belinha. Foi quando nossa mãe nos levou para morar no prédio da segurança, que por ter mais humanos, os perigos se tornavam menores. Lá, crescemos.

Quando a minha irmã completou dois meses, foi adotada, mas, eu permaneci lá por um bom tempo, e também foi lá que conheci meus outros companheiros de matilha.

Como a água era mais difícil próximo ao bloco da segurança, a minha turma resolveu mudar para o prédio mais perto do rio, e quando a noite chegava, nós entravamos debaixo do edifício e ficávamos lá juntinhos e encolhidos para nos aquecer. Um ficava de prontidão para não sermos pegos de surpresa pelos outros animais, como as cobras ou por humanos.

Logo que o sol nascia a gente saía para se aventurar pelas matas e prédios da Universidade. Lembro que algumas pessoas nos olhavam com carinho, dividiam comida conosco e até brincavam.

Já outros, nos xingavam, jogavam coisas para nos machucar e queriam bater na gente. Não sei porque eles tinham tanta raiva de nós, pois só queríamos brincar com eles e lambê-los muito.

Cheguei a ouvir algumas pessoas gritarem que éramos perigosos e iríamos mordê-los, eu ficava pensando de onde eles criavam essas histórias.

Eu nunca nem mordi ninguém, não tinha porque eu fazer isso. Pois até quando me batiam, ficava chateado, magoado, mas corria e me escondia, nunca revidei. Nos chamam de animais irracionais, mas para mim, eles que eram os selvagens.

De vez em quando nos aventurávamos no terreno de outra matilha, aí era uma confusão, pois eles corriam atrás da gente e tentavam nos pegar. Sempre escapávamos. Erámos muito bons nisso. O fato é que cada matilha tinha seu espaço, e não tínhamos realmente a intenção de tomar o lugar deles, mas provocá-los era muito divertido.

Outro lugar maneiro de ir na Universidade, era a lanchonete que ficava próximo ao nosso cantinho. Lá costumava ter muitas coisas deliciosas, e lembro que o vento trazia o cheiro, eu delirava de vontade, pois imaginava que deveria ser tão saboroso quanto o aroma, e a minha boca ficava cheia de água.

Certa vez, o rapaz estava desligado olhando para uma jovem, fui sorrateiramente lá, bem perto, e mais do que rápido, roubei a salsicha que ele tinha colocado na bancada e saí correndo. Ele ficou muito zangado, correu atrás de mim e me xingou muito, mas, consegui escapar. Nunca comi uma salsicha tão gostosa.

No entanto, tempos depois, algo de muito estranho aconteceu. De um dia para o outro essa Universidade que era lotada de gente, do nada, esvaziou.

As pessoas que iam e vinham o dia todo aos bandos, sumiram, junto com os carros, motos e bicicletas.

Até as construções dos prédios novos pararam, e os trabalhadores barulhentos e divertidos não foram mais lá.

A grama começou a crescer, as lixeiras não enchiam mais, as folhas das árvores se espalhavam por todo campo e cobriam tudo. E ficávamos nos perguntando o que havia ocorrido.

Então, eu e meus amigos sentimos muita falta de algumas daquelas pessoas, porque apesar de estarem sempre correndo, alguns deles, tiravam um tempinho para gente. Nos acariciavam e até dividiam os lanches deles com a gente.

Obviamente, tinham uns que eu não fazia a menor questão que retornassem, pois só me xingavam e tentavam me bater. Desses eu não senti a menor falta.

A minha sorte é que eu conseguia escapar e me esconder dessas pessoas más no meio do mato até a poeira baixar, afinal, herdei da minha mãe pernas ligeiras e ágeis.

De qualquer forma, os risos e falas das pessoas começaram a fazer muita falta, pois tudo era bem mais alegre e tinha mais vida. O silencio se tornou tão grande que erámos capazes de escutar o barulho do vento, coisa que não acontecia antes.

Restaram na Universidade, somente uns poucos humanos, que entravam e saíam dos prédios de vez em quando, e os seguranças dos portões e de alguns prédios.

Uns gostavam da gente, brincavam, nos davam água e dividiam a comida deles conosco, mas, a maioria nem queria saber de nossa existência, só gritavam e nos expulsavam de lá.

A vida estava muito triste desde então. Encontrava minha matilha, corríamos, brincávamos, mas, nada era igual a antes. Até os pássaros estavam cantando menos.

Um dia eu estava assistindo televisão com o Arinaldo e foi então, que ouvi que o desaparecimento de tanta gente da Universidade era na verdade por causa de uma tal pandemia que havia chegado e estava matando os humanos.

Nem o Arinaldo era mais o mesmo. Ele andava triste e sem querer conversa, usando uma máscara no rosto. Pensei até que ele tinha deixado de gostar de mim.

Notei que, como o Arinaldo, outros seguranças também estavam usando a tal máscara, e alguns eu passei a conhecer só pelo cheiro, já que não tinha mais como ver os rostos.

Ouvi falar na televisão que a máscara era para tentar não pegar a doença. Mas, será que só ela ajudaria? Eu via as pessoas colocarem as máscaras e deixarem o nariz de fora ou então ficarem só mexendo e mexendo. Não compreendia bem, mas para mim, elas não estavam usando como deveriam.

A mulher do Projeto havia sumido. Me parece que ela pegara essa doença. Nós esperávamos de coração que ela retornasse logo, pois todos tínhamos muito amor por ela, e o sorriso e o carinho dela, nos dava esperança de um dia encontrarmos um lar para nós ou pelo menos sonhar com um.

Teve um dia que estava especialmente quente, o vento nem corria, e eu fiquei deitado em um pedaço de terra à sombra de uma árvore, me perguntando: “O que estaria realmente acontecendo?” “O que seria de nós?”

Como em um milagre, descobrimos certo dia, que não havíamos sido totalmente abandonados. De repente, algumas pessoas começaram a vir na Universidade uma vez ao dia.

Eram poucos, dois ou três, e sempre diferentes a cada dia da semana. Eles se chamavam voluntários, e graças a eles, não tínhamos sido esquecidos por causa da pandemia. O que nos dava esperança de uma vida futura e mostrava que ainda existiam muitas pessoas de bom coração.

Os voluntários costumavam trazer a ração para nos alimentar e água para bebermos. Falavam com a gente e nos faziam carinho, quando deixávamos, porque, como muitas pessoas nos batiam e nos xingavam, nós tínhamos um certo receio de deixar qualquer um chegar perto da gente.

O fato é que quanto mais eles vinham nos ver, mais confiávamos que não iriam nos maltratar, e aos poucos íamos nos aproximando deles.

Alguns até tentavam nos ajudar com medicações e tratamento, pois sozinhos na Universidade estávamos mais predispostos a adoecer e nos machucar.

No entanto, apesar da boa vontade para cuidarem de nós, as vezes não dava mais tempo, e também, os voluntários não tinham conhecimento sobre como tratar de cães, só um grande desejo de nos ajudar. Acabou que alguns cães morreram por doenças que não são tão perceptíveis e que necessitavam de mais cuidados.

A cada dia que se passava, a tristeza só aumentava, pois os casos da doença só progrediam, matando milhares de pessoas. Só nos restava esperar por dias melhores e torcer para que os voluntários não pegassem essa doença e nos abandonassem.

Toda essa tragédia estava me deixando cada dia mais preocupado, pois eu já não era tão jovem, e tinha medo de morrer abandonado naquele lugar!

Pedia com todas as minhas forças para a mulher do projeto retornar para cuidar da gente. Pois eu tinha medo da doença levar ela e ficarmos desamparados totalmente, porque o Arinaldo já havia sumido. Eu temia que ele tivesse adoecido, sentia muita falta dele, mas, não conseguia descobrir o que estava acontecendo.

Eu escutava os relatos sobre como era morrer daquele mal, e ficava imaginando o quanto deveria ser terrível você não conseguir aspirar, sentir o ar fugindo de você e ninguém pode te ajudar.

Eu pedia muito para que se o Arinaldo tivesse adoecido, que a cura chegasse a ele, pois era o meu amigo humano mais atencioso.

Até para ver as notícias na televisão agora era mais difícil, e o fato de eu não poder ajudar os homens e não saber se iriam encontrar uma cura me deixava bastante angustiado.

Que o Deus dos cães ajude os homens de bem a se curarem e se livrarem dessa terrível praga.

Na Universidade tudo foi sempre muito bonito e espaçoso, mas, também é um lugar cheio de perigos inesperados. E se nós ficássemos sozinhos, desamparados, poucos de nós conseguiríamos sobreviver, pois não entendemos muito de supervivência.

Notei que os urubus que pouco apareciam, começaram a tomar conta do lugar. Será que eles estavam esperando as nossas mortes? Ou também estariam famintos e sem ter aonde arranjar alimento?

Nos últimos tempos, eu e meus amigos estávamos tão preocupados com tudo o que vinha acontecendo, que as vezes eu me deitava em um canto, e sentia meus olhos marejarem e meu coração apertar.

A tristeza era tanta que cheguei a pensar em ir embora, sair pelos portões e procurar um lar em outro lugar. Quem sabe até encontrar a minha irmã Belinha.

Mas o Chicão, que era o maior cão da nossa matilha, certo dia, também ficou cansado de tanta tristeza, e saiu para a rua dizendo que não retornaria. Dias depois ele voltou. Sujo, magro, sedento por água e com muita fome.

Depois de beber água do rio, e descansar um pouco debaixo da sombra de uma árvore, ele fez um relato terrível.

Contou que as ruas estavam desertas, que tudo parecia ter sido abandonado e não se via ninguém andando por elas, nem mesmo de carro, moto ou bicicleta.

Ele falou que ficou muito assustado, com medo. Pensou que o mundo havia acabado. Os comércios fechados, não tinham barraquinhas na rua, tudo estava como se fosse em um cemitério, deserto total.

Disse ainda, que encontrou alguns cães e gatos, e que eles estavam com muita fome e sede, pois os restaurantes e bares que eles costumavam ir, agora estavam fechados, logo, eles não tinham o que comer e alguns já estavam doentes, e os urubus só rondavam e esperavam a morte deles.

Ficamos todos muito horrorizados e o medo tomou ainda mais conta de nós. Afinal, aqui apesar do abandono do lugar, ainda podemos ver e falar com os seguranças e com os voluntários que cuidam de nós, e isso, vejo agora que não tem preço. E sinto pena dos pobres animais de rua que não tem para onde ir. Esses sim, talvez tenham um futuro pior do que os nossos.

Chicão ainda falou que alguns humanos colocaram os seus animais de estimação na rua, alegando que podíamos ser transmissores dessa doença. Algo completamente sem sentido. Às vezes o comportamento humano ainda me surpreende, porque é muita falta de conhecimento e compaixão.

Sem nenhuma piedade, muitos cães foram abandonados. Isso é extremamente doloroso, pois temos vida e sentimentos, e fomos colocados aqui pelo mesmo Deus dos humanos para fazermos companhia a eles, por isso, temos uma ligação tão profunda e antiga com a raça humana.

Enfim, ele disse que a cidade estava estranha e quase nunca se via pessoas nas ruas, dava até para ouvir o vento nos galhos das árvores.

Depois dessa experiência, ele retornou ligeiro para cá, pois aqui, pelo menos temos uns aos outros, e um pouco de comida e atenção.

Sempre que eu conseguia me aproximar da televisão, além de lembrar do Arinaldo, tentava escutar o que estava acontecendo.

Parecia que o mundo estava apanhando bastante, pois esse maldito COVID-19, não tinha dó, nem piedade e muito menos preconceito. Ninguém estava isento de ser atingido por ele, e até os que adoeciam e conseguiam se recuperar, ficam ainda bem debilitados ou com adquiriam outros problemas de saúde.

Nunca imaginei que uma raça como a dos homens fosse ser atingida por um inimigo contra o qual não tem armas para lutar.

Um inimigo lento, invisível e poderoso, e se fazia necessário um verdadeiro milagre para a salvação da humanidade.

Eu tinha muito medo dessa doença maldita destruir os humanos.

Mesmo sabendo que alguns homens são ruins, nos maltratam e até nos matam, nós precisamos da raça humana, porque existem muitos que são verdadeiros anjos que cuidam da gente e nos dão amor.

Naquele tempo, eu já não conseguia vislumbrar um futuro para nós.

Mas, como tudo na vida, apesar dos milhões de mortos em todo o planeta, conseguiram não a cura, mas o controle dessa doença.

Muitos hábitos foram mudados. As pessoas já não se abraçam como antes e o uso de máscaras, sabão e álcool gel passou a fazer parte da vida de todos.

O Arinaldo retornou ao trabalho. Ele e a esposa tiveram a doença. Ele se curou, mas, ela infelizmente faleceu, os pulmões não suportaram, e isso o deixou arrasado.

A nossa protetora também conseguiu a cura, e algo bem melhor. Depois de tanta luta e sofrimento, parece que algumas pessoas vieram a compreender melhor o bem que ela nos fazia, e ajudaram doando um grande terreno construído com casinhas maravilhosas para os cães e gatos da Universidade, e com assistência médica. A maioria dos cães do Projeto foram morar nesse lugar que dizem ser um verdadeiro paraíso.

Eu e Lulu, no entanto, tivemos um outro destino. A Lulu foi levada por uma senhora do Projeto, e agora tem um lar maravilhoso.

E eu, para a minha total alegria e felicidade, agora moro com o Arinaldo e com você, Morgana, que é uma gata persa marrom, muito charmosa e que cisma que é jornalista, e por isso resolveu me entrevistar.

Depois que o Arinaldo ficou sozinho, ele resolveu que eu seria uma boa companhia, e hoje somos muito felizes.

Eu tenho uma caminha, uma manta macia, água fresca no pote e comida. Nunca imaginei que pudesse ser tão feliz.

Mas, sinto saudades dos meus velhos companheiros. O que me tranquiliza é saber que hoje eles estão sendo bem cuidados.

Morgana pergunta se Raimundo Paulo acha que a pandemia deixou somente tristezas, ao que ele responde:

- Não. Acho que a pandemia trouxe muitas mudanças, não só para os homens, como também, para nós. Ajudou a despertar sentimentos de bondade que algumas pessoas não tinham tempo para demonstrar, já que viviam a correr para ter uma vida material melhor.

O tempo que as famílias ficaram mais unidas dentro de casa, penso que criou laços mais fortes entre pais, filhos, avós e outros.

O verdadeiro amor e a compaixão se sobressaíram no sofrimento de tantas vidas que partiram sem poder dizer adeus.

Agora, eu realmente acredito em mundo melhor e em homens melhores. Tenho fé em um futuro para a Terra, a humanidade e a todos os seres vivos.

E aprendi, que nunca devemos perder a Fé, ela nos mostra o amor, a compaixão, a amizade e tantos outros sentimentos admiráveis que estavam adormecidos em tantos corações.

E por último, mas não menos importante, o Arinaldo mudou meu nome para Bento, porque Raimundo Paulo era muito longo, acho que ele tem preguiça de falar. E é tudo.

Raimundo Paulo sorri para Morgana e ela retribui o sorriso, e diz:

- Nunca imaginei que você tinha tantas histórias para contar e de como a pandemia acabou por atingir não só os humanos, mas também a todos que a eles estão ligados. Você conseguiu abrir em meu coração uma nova visão de esperança e amor ao próximo. Agora vou procurar o meu próximo entrevistado.

E saiu rebolando os quadris toda serelepe, enquanto Raimundo Paulo foi em direção ao quarto de Arinaldo para lhe acordar.

Noélia Alves Nobre
Enviado por Noélia Alves Nobre em 15/08/2020
Código do texto: T7035851
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