O Caminhante

‘Devagar se chega ao longe’, dizia minha avó sempre que eu reclamava de como a vida parecia vagarosa e entediante na infância. ‘Um passo é melhor que nenhum passo, a direção não é um mero detalhe’.

Já perdi a noção de quantos passos dei desde meu último repouso, ofendi em pensamento aos deuses, pelo sol particular que me fora dado e pela sensação de boca seca que não permite sequer esbravejar minhas lamúrias ao tempo.

O chão batido, poeira que levanta em cada passo, poeira que se une ao meu suor, suor que escorre pela pele. É como caminhar pelo deserto a procura de um oásis. Há tempos encarei a jornada que julgava ser a correta para minha vida, carregando comigo apenas o essencial no bolso.

Eis que ao longe o oásis existe.

Em meio aos campos de trigo há um casebre. Observo nas redondezas e percebo que não há trilha ou estrada que leve até lá e por um breve momento me desmotivo a tentar chegar à casa. O céu parecia mais azul, algumas pequenas nuvens se dissolviam com a brisa e por um momento emoldurei aquela imagem na minha alma. Um passo dado na plantação e a brisa me acolhe, ‘seja bem-vindo, caminhante’ ela diz, acaricio o trigo que aguarda a colheita e observo o dourado de encontro as minhas mãos sujas, o atrito na pele que nada incomoda, é um campo de paz, ainda que momentânea.

Um ruído repentino me deixa alerta.

_ Oi, Oi, Oi. Um pequeno garoto surge do nada, afoito, pega minha mão e tenta me arrastar com ele.

_Ei garoto vá com calma, aconteceu alguma coisa?

_Não, não, não. Venha brincar comigo!

Estava a poucos passos da casa quando o garoto solta minha mão e sai em disparada sentido a entrada:

_ Mãe, mãe, mãe! Temos visita mãe! Temos!

Ele sequer entrou, quase a porta deu meia volta e saltitando foi para os fundos.

A casa era mais simples do que pensara ser. Logo na entrada havia diversas ervas presas ao batente para secar, alguns animais soltos de criação que agora o garoto corria atrás, parecia baixa também. Eis que surge a porta uma dama de vestido longo, lenço envolto aos cabelos e cheirando a pão.

_ Boas tardes caminhante, que seja de paz.

_ Boas tardes senhora.

O aroma do alimento atiçava meu estômago que há muito não recebia nada, eu quase sentia o sabor pelo cheiro.

_ Gostaria de um pouco de água se não fosse incomodo.

_ Não é incomodo algum, entre por favor. Não temos luxo, mas posso te oferecer algo para comer e uma cadeira que possa repousar por um tempo.

A pequena cozinha possuía alguns móveis de madeira e um grande fogão a lenha. Na pequena mesa ao centro um jarro de barro com alguns copos e uma tigela com alguns biscoitos e pães.

_Moço, moço... vai ficar para o jantar? Quero que conheça minha avó. Ouvi dizer que existem sons estranhos do lado de fora da casa anoite, mas mamãe não me deixa ver o que é. O que é isso no seu bolso?

Como chuva de verão, o garoto vinha e partia todo o tempo.

_Este é meu filho Eidan, pelo visto já o conhece.

_ O conheci ha pouco, ele foi me encontrar na plantação.

_ Mamãe eu o vi de longe, o chamei várias vezes até que ele me ouviu, depois o busquei no campo para que ele não se perdesse no caminho.

Eu não ouvi nenhum chamado, mas ele parecia tão empolgado com sua história heroica de resgate que seria rude da minha parte interromper.

_Eidan não perturbe o rapaz, mas reforço o convite caso queira ficar para jantar conosco, quase nunca recebemos visitas e meu filho realmente está feliz com sua chegada.

_Agradeço, mas não quero incomodar. Preciso seguir meu caminho enquanto é dia.

_ Sei que a noite é repleta de perigos, mas gostaria que ficasse. Não se acanhe, sirva-se de pão e água, não é muito, mas é de bom grado.

Me servi. Na primeira mordida era como sentir muito além de trigo e água, era macio e saboroso e de veras temi a minha expressão de puro contentamento naquele instante.

_Mamãe aprendeu a assar pães com a vovó, eu até gosto do pão, mas prefiro os biscoitos. Está vendo esse? Parece um ovo de pata.

De fato, parecia.

_ Não consegui todas as ervas que gostaria. Me falta algumas folhas picantes para aquecer o chá da noite. Olá jovem rapaz, vejo que encontrou o caminho e já parece um tanto melhor.

Uma mulher aparentando alguns anos a mais adentra a casa. Ambas se parecem e olhar as duas tão próximas era ver gerações de força e delicadeza, com olhares idênticos. Engraçado como as primeiras impressões quase sempre são as verdadeiras, elas tinham bom coração.

_Uliane tente acalmar o menino ou assustará nosso caminhante. Por favor não deixe Eidan molhar a lenha que deixei lá no fundo. A noite de hoje terá fogueira e castanhas.

Por breves instantes eu me senti parte daquilo, como se de fato encontrasse o caminho sem que ele existisse.

_ Como quiser mamãe, deixei água a ferver para que prepare os chás.

A velha senhora dispõe a mesa várias ervas, junta algumas delas e as coloca na água quente, o aroma fresco rapidamente invade o recinto, lembra um tanto eucalipto. Após um tempo ela distribui a bebida em canecas e estende uma delas para mim. Era como se a fumaça dançasse no ar. Ao tocar a caneca quente vejo que nela se forma um desenho. O calor intenso que faz lá fora parece não interferir na ideia de provar a bebida.

_Chá quente é afago de coração que dói, mesmo que lá fora esteja mais quente que aqui, o chá cura a dor da alma que sofre, cuida de você por dentro.

_ Que desenho é este? estranha ele ao olhar com mais atenção para a caneca. 'Lembra de fato um homem mais velho'.

_ Talvez seja você, todo caminhante carrega consigo a sabedoria de cada passo. O você hoje é melhor que o de ontem e desejo que todos os dias sejam assim.

O conforto das palavras caía tão bem quanto o chá que eu sorvia. Ela passou a me contar sobre as árvores que existiam ali antes das plantações, de como seus antepassados construíram suas moradas com tão pouco e de como a natureza era importante para eles. Uliane ouvia atentamente a mãe, histórias que com certeza ela já conhecia, mas tinha prazer em ouvir enquanto o pequeno Eidan chutava uma bola entre as pernas de uma cadeira que estava por ruir.

A noite caiu e eu sequer notei, comi tantos pães e biscoitos quanto pude e recebi mais canecas de chá.

_ Meu jovem pode me ajudar a acender a fogueira? O pequeno logo pedirá pelas castanhas e não costuma ser tão paciente na espera.

_É fome vovó, sabe que gosto de comer. Moço, o que é isso no seu bolso?

Tateei os bolsos e encontro um cristal antigo que coletei pelas minhas andanças, mesmo a luz fraca das lamparinas mostra o brilho por lapidar da rocha.

_Você gostou? Encontrei um tempo atrás.

_ Vovó ele tem uma estrela. Já tentou contá-las alguma vez? Eu sempre me perco quando chego no número 12. Mas vou lembrar que agora é menos uma lá em cima.

Caminho para fora da casa, passo a unir alguns pedaços de lenha, Eidan me ajuda com os mais leves enquanto me conta histórias de animais e do seu apreço por goiabas. Uliane e a mãe trouxeram banquetas e pouco depois nos sentamos próximo a fogueira que já crepitava.

_Conte-nos sobre você caminhante, o que faz por terras insalubres de dia e tão frias anoite?

Uliane, sentada do lado oposto ao meu, tinha os olhos fixos em mim, olhos que pareciam arder como as chamas, chamas que não queimavam, mas sim ofereciam conforto. Havia carinho em seus olhos e os cabelos, agora soltos, emolduravam um rosto com marcas do tempo, mas de sorriso jovial.

_ Há tempos caminho na esperança de encontrar o meu propósito. Conheço pessoas e lugares e cada vez que isso acontece sinto mais falta de casa. O mundo é imenso, mas a morada do peito é apenas uma.

_Não especule sobre a vida do homem, minha filha. Caminhante é aquele que caminha, mesmo as vezes sem saber onde o caminho se findará. Homens como ele merecem o afago e a atenção quando chegam, pois, amanhã ou depois não se sabe se por esse caminho ele retornará.

Uliane recebe as palavras como uma criança ao ser repreendida. A mãe sabe que não fora ríspida, mas a filha sempre sente. O chá servido por elas agora tem gosto quente, canela ao que parece. Sobre o fogo um tacho de torra com muitas castanhas que já perfumavam o ar.

_ Mamãe, olha só!

Eidan esticou seus braços para o céu, como quem quisesse abraçar algo.

_ O que está a fazer, meu menino?

_ Quero dar um presente ao caminhante.

Com passinhos de lado, ele se aproxima e pergunta ‘qual seu nome, moço?’

_Tristan, meu nome é Tristan.

_ Mamãe darei um presente ao meu novo e melhor amigo Tristan.

_ O que dará a ele?

_ Eu posso dar o céu? É tudo o que eu queria alcançar agora.

Nunca alguém estremeceu meu peito como Eidan fez. Como um ser tão pequeno poderia tem um coração tão imenso. Vovó intervém:

_ Meu querido, o céu é para todos, mas só tem as estrelas quem de fato aprecia também o ensolarado do dia e as nuvens que caminham no céu.

_ Então eu posso dar?

_ Claro!

Em um salto o pequeno pula em minha direção e me abraça com tanto afeto que sinto pedacinhos do meu peito se unindo. Já não sinto o frio que sentia antes, meus olhos por muito pouco não deixam as lagrimas escaparem.

_ O céu agora é seu Tristan, sempre que olhar para ele, se lembre que fui eu que te dei de presente.

_ Por que escolheu o céu? Pergunta Uliane.

_ É o que de mais belo eu conheço. Vovó quero castanhas!!

Noite adentro continuamos nossas conversas, seguidas de silêncios que apreciavam as chamas. Vez ou outra a caneca era completa por chá quente. O menino sonolento se encostou no meu ombro e já estava quase por cochilar.

_ Uliane entre e arrume as camas, o fogo não tardará apagar e nosso convidado precisa descansar.

_ Claro mamãe, logo volto para buscar Eidan.

Por um breve momento não sabia o que dizer.

_ Meu jovem, em algum momento pensou por que não existe estrada para chegar a nossa casa?

Para mim fora um questionamento sem de fato desejar resposta.

_Um caminho não é uma estrada, um caminho não é apenas uma trilha, o caminho se faz quando se observa lá na frente o seu destino. O único obstáculo era você mesmo, hesitando o primeiro passo. Perceba que mesmo um caminhante em certos momentos deixa de caminhar. Se a velha aqui puder te aconselhar apenas deixe de caminhar quando sentir seu coração seguro.

O menino desperta bruscamente ao meu lado e me entrega um cordão com pequenas bolinhas azuis.

_ Quando te vi vindo lá de longe peguei entre as minhas coisas para te dar, mas quando vi a estrela no seu bolso eu acabei me esquecendo. Pode guardar com você, é bonito e vai te proteger.

_Apenas guardarei comigo se aceitar a minha estrela.

_É uma boa troca!! Vamos dormir? Está frio aqui e minha barriga dói... comi castanhas demais vovó.

_ Guarde o amuleto contigo Tristan, não há nada mais valioso do que aquilo que é ofertado com amor.

_ Eu não sei como agradecer por tudo o que fizeram por mim hoje.

_ Nós que agradecemos, oferecer a você o pouco que temos e receber a atenção que há muito não tínhamos. O trigo nos protege daqueles que querem estar por estar mas acolhe aqueles que algo bom pode nos oferecer. Vamos entrar? Este jovenzinho precisa dormir. Amanhã todos nós temos nosso caminho a seguir.

Já acomodado em uma pequena cama, coberto por enormes mantos de carneiro e na companhia do pequeno Eidan olho para o mesmo céu que naquela tarde era de um azul profundo, as estrelas agora são pequenos pontos brilhantes que cativam meus olhos. ‘ o céu agora é meu também’.

De fato,um passo é melhor que nenhum passo e a direção nunca é um mero detalhe.

Talvez, e apenas talvez, quando a manhã chegar... o caminhante finalmente deixará de caminhar.

Córdia
Enviado por Córdia em 13/08/2020
Reeditado em 13/08/2020
Código do texto: T7034653
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