Damasceno era bem o tipo que chamam por aí de boa alma. Não tinha boca para nada. Criado no sítio, só foi para a cidade quando trocou as calças curtas por aquelas de brim cáqui, exigidas no uniforme do Ginásio. Estava indo, então, para estudar, hospedando-se na casa dos tios. Guri viçoso, porém indolente, Damasceno descobria novo mundo. Já tinha alguns amigos por lá, conhecidos nas quermesses da festa anual em louvor ao padroeiro da cidade. Era dia de se deliciar com os comes e bebes. Algodão doce, daqueles pendurados numa espécie de imenso cabide, que até pareciam o arco-íris pelo seu colorido, maçãs do amor espelhadas pela calda de açúcar e o quebra-queixo cortado com formão. Doce duro... mas, uma delícia! Era de se empanturrar.
Chegava a sonhar com o dia da festa. Fazia planos e tinha um pedido especial para o pai: “fotografia no binoclinho”.  A grande atração quando voltava para o sítio no fim do dia. Reunia os amigos para mostrar sua pose na festa, tendo ao fundo a procissão com a imagem do padroeiro. Com jeito de cai-não-cai, levada no andor por quatro congregados marianos, de largas fitas azuis ao redor do pescoço.
A propósito, vale destacar que esse era um dos sonhos do menino: ser Congregado Mariano quando crescesse. Também a irmã Maria das Graças, batizada assim em homenagem à Virgem Santa, tinha em seus desejos a glória de passar pelo corredor da igreja, na hora da comunhão, com o véu branco sobre a cabeça, a fita de Filha de Maria ornando sua blusa e ostentando uma postura de acordo com um dos princípios da Pia União: ser grave e sempre decente.
Damasceno já começava a ver o mundo de outra maneira. Estava agora no dia a dia da cidade, aquele corre-corre das pessoas, sem aquele ar contrito que aparentavam durante as cerimônias litúrgicas nos dias da festa do Padroeiro. Na verdade, da linguagem religiosa, na rotina diária, valia apenas o cada um por si e Deus por todos. Assim foi se acostumando e dividindo o dia entre as tarefas da escola e o auxílio na limpeza da casa.
Na modorra da tarde, quando lhe batia a lombeira, Damasceno lembrava-se da vida na roça. Em momentos iguais àquele que agora vivia, para fugir do sol, parava de capinar e ia para a sombra debaixo de alguma árvore. Ficava ali na pose de “dar de mamar à enxada”. A imagem era essa, com o cabo da ferramenta encostado em seu peito e olhar perdido no extenso eito de roça para cumprir. Se hoje não havia “Duas Caras”, a enxada preferida, lhe era dada a vassoura para limpar a casa da tia. Dessa maneira ia tocando a vida, fazendo ouvidos de mercador às broncas da dona da casa. Se a saudade batia começava a cantarolar “Quando no terreiro é noite de luar e vem a saudade me atormentar... eu me vingo dela tocando viola de papo pro ar”.
Mas, nunca elogie um burro antes de atravessar o rio.  Não precisou chegar ao segundo ano do ginásio, com suas aulas de latim, para Damasceno ensinar o padre a rezar missa. Pela influência dos amigos e diante da zombaria de alguns da turma da escola, que viviam a lhe chamar de matuto, Damasceno conseguiu “alvará de soltura” para se desprender da imagem. Era a autorização para mexer naquela máquina que havia no escritório do tio. Naturalmente, com a supervisão da prima.
Ficou abobado quando viu as primeiras imagens. E as descobertas pelo Yahoo, Cadê...!!! Foi descobrindo coisas. Vendo os tênis da moda, penteados... Damasceno já estava noutra. Em cada ida para o sítio, contava para os pais, que abriam sorrisos de orelha a orelha, orgulhosos dos avanços do filho.
A satisfação do pai, que de sol a sol lutava contra ervas daninhas, sol e chuva e mais ainda o gerente do banco, era ver o progresso do filho em sua vida da cidade. Contava para todo mundo na venda do Aparício: - o menino tá indo faceiro e adiantado nos livros. Tá se desgarrando dessa lida do sítio.
Para ver o filho se arranjar melhor, não poupava esforços e sacrifícios. Com isso, logo logo, Damasceno mudou o figurino. Deixou as calças largas e os chinelos perdidos num canto da despensa. E adotou a moda da cidade e o que via no computador.
Resumindo a ópera: Damasceno agora é todo high tech. Percebeu que os benefícios da tecnologia se adaptavam bem à sua propensão ao “dolce far niente”. Se antes não era chegado ao batente agora estava à vontade. Mudou da garapa para o vinho. Até namorada arranjou no feicebuque e marcava os banhos de rio com a turma pelo zapzap. Na agenda do celular, só tem marcado baladas e churras. A festa do Padroeiro é lembrada apenas quando abre a gaveta onde estão as lembranças dos pais e vê lá, perdido num canto, o “binoclinho”.