Simbióticas

A mãe interrompeu a leitura enquanto sua mão ossuda, fazia do cafuné um desconforto. Afagava os cabelos da filha e assim, via o tempo lento e dolorido. Fechou o livro, era hora da medicação. " Tome, meu amor, engula.", disse a mãe. Duas gotas após o jantar e uma hora depois, a filha dormia como criança. Na verdade, era uma criança num corpo de adulto, pois a doença a fez permanecer assim, como se tivesse quatro, cinco anos de idade.

A mãe, já idosa, passava boa parte da madrugada lembrando do passado, da casa cheia, dos jantares, das roupas caras, das amigas socialites engolindo as suas próprias línguas enquanto grasnavam às custas de suas plásticas mal feitas.

Lembrava do marido, que a abandonara assim que soube do diagnóstico da filha. Foi viver com outra mulher, na Espanha. Deixou-lhe a pequena fortuna como compensação. Essa, foi gasta com médicos, remédios, enfermeiros, padres, novenas. Nada curou a menina. Transtorno mental, comportamento agressivo.

"Venha, meu amor, hora do banho." A filha gritava, corria nua pela casa, enquanto a mãe, com toda paciência, tentava acalmá-la ao som do grupo Roupa Nova, sua banda preferida.

Almoçavam, ouviam o rádio, faziam tudo juntas. "Vamos rezar, meu amor?". Com o terço na mão, a filha tagarelava um mantra qualquer enquanto a mãe pedia por semanas de paz.

Num dia ordinário, a filha pediu colo. Aquele corpo grande, pesado, de cabelos ruivos, olhar perdido e saliva excessiva. Mas quando a mãe baixou a guarda, levou uma mordida no seio esquerdo. A mãe conteve o choro, enquanto a filha gargalhava incessante e irracional. Amor e ódio na mesma proporção.

A mãe vivia em função da filha que necessitava de cuidados extremos. Aos poucos, foram se isolando das pessoas, do mundo. Mais duas gotas, "Tome, beba tudo.", "Mamãe! Mamãe! Vamos ver quem dorme primeiro?". Todos os dias a mesma rotina, uma velha e uma adulta que mentalmente, teria sempre pouca idade.

Os ossos doloridos já não disfarçavam o cansaço, duas gotas após o jantar, e a filha demorava cada vez mais a pegar no sono." Mamãe, quero ouvir Trem Azul."," Hoje não, meu bem, vamos ver quem dorme primeiro?", "Sou eu! Sou eu, mamãe!".

A velha apagou as luzes e esperou a filha dar seu primeiro ronco. Desceu as escadas, em direção ao gazebo, sentia dores nas costas, nas mãos, mas era a melhor hora do dia; adorava reconhecer seu passado em cada cômodo da mansão antiga.

Enquanto admirava suas hortênsias ouviu um baque, seguido de um grito que lhe atravessou o peito. Diante do susto, esqueceu as dores e caminhou o mais rápido que pôde, até ver a filha caída entre as almofadas, na sala principal. "Mamãe, eu sei voar! Eu sei voar!". A velha não conseguiu esboçar reação.

"Onde você vai, mamãe?", "Levante! vou buscar o chá, já que você está acordada. Mas que inferno!". A velha foi até a cozinha; vinte e cinco gotas para cada copo, água, açúcar. "Tome, beba logo."," Quero a xícara amarela, mamãe...", " Vá logo, sem conversa. Beba!", "Humm, está docinho, mamãe." , "Está." A mãe disse. "Vamos ver quem morre primeiro...", pensou.

Lis F Nogueira
Enviado por Lis F Nogueira em 09/08/2020
Código do texto: T7031053
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