Digna de ser amada
Capítulo Um
A vida parecia tê-la escolhido para as agruras e desilusões destinadas aos esquecidos. Durante muitos anos apanhou, apanhou e apanhou… e ainda continua apanhando. Agora já não mais do ex marido ébrio com quem fora casada por oito anos, mas de seus paradigmas, alguns bastante longevos, e daquilo que se imprimiu em sua mente mais profunda a respeito dos homens e da vida. "Homens não prestam. São todos iguais", ouvia sua irmã mais velha dizer desde que era uma garotinha. Ana Paula, a primogênita, atualmente já passava dos cinquenta, beirava os sessenta, na verdade, e, em seu atual e quarto casamento, mais uma vez sofria com os mesmíssimos infortúnios que sofrera nos relacionamentos anteriores. Amanda achava que sua irmã era apenas azarada e péssima para escolher homens. Jamais associou o discurso da irmã ao fato de essa vivenciar com relevante precisão aquilo que apregoava há mais de trinta anos.
Após o término de seu conturbado matrimônio, a casa de sua mãe tornou a ser o lar de Amanda também, e voltar a trabalhar, agora, já não era apenas algo possível, mas uma necessidade. Essa era uma das coisas que Eduardo, o ex marido, a proibiu de fazer durante seus anos de casada. Agora, Clarice, sua filhinha de três anos, fica sob os cuidados de dona Edinalva, a avó, cinco dias por semana. Finalmente seu sonho de lecionar tornara-se realidade. Fez isso durante um ano antes de conhecer Eduardo e era apaixonada pelo que fazia. Mas ele a persuadiu a abandonar o emprego. "Você não precisa trabalhar, tenho um bom emprego e nada te falta, nem mesmo um carro novo para dirigir", dizia ele. Hoje o arrependimento por tê-lo ouvido era algo esmagador em sua alma. Odiava-se por haver escolhido uma escolha que não era a sua.
— Queria falar comigo, Júlia? – disse à diretora, que também é a dona do colégio e sua amiga de infância.
Contratar uma educadora com pouca experiência e tanto tempo sem lecionar, ou seja, fora "do mercado", não era algo que a empresária Júlia tinha por hábito fazer. Por essa razão, decidir colocar Amanda em sua folha de pagamentos foi uma decisão tomada por Júlia, a amiga, que no início de seu negócio recebeu de sua contratada o estímulo necessário para iniciar o empreendimento que hoje se havia tornado uma respeitada unidade de ensino.
Júlia deu um longo suspiro antes de dizer:
— Amanda, por que estava aqui no sábado?
— Ora, Clarice estava com o pai e tinha umas pendências pra eu resolver e…
— Amanda, para!!! Até quando vai fugir de voltar a viver? Até quando vai viver no passado e criar um futuro sombrio para si?
— Meu trabalho e minha filha são minha vida, Júlia. Não sei do que está falando!
— Sim, parece que não sabe, Amanda. Até mesmo colocou o trabalho na frente de sua filha. Não percebe o significado disso?
Amanda arregalou os olhos e calou-se. As palavras de Júlia tiveram o impacto de uma experiência de natureza epifânica. Bateram em seu coração e destruíram uma espécie de invólucro, de carapaça, de envoltório, duro como diamante. Pela primeira vez na vida pôde enxergar que não dava a Clarice todo o amor que, como mãe, devia-lhe. Não se podia dizer que a tratava mal, mas tampouco era a melhor mãe do mundo quando o assunto era amor, carinho e dedicação. Percebeu também que isso ocorria porque, de maneira inconsciente, atribuía ao nascimento de sua filha o fato de ter postergado o fim do abusivo relacionamento com seu belicoso ex marido. Entretanto, isso estava longe de ser uma atribuição justa, pois antes mesmo de se entregar à maternidade, já sofria abusos e era maltratada tanto física quanto emocionalmente. As lágrimas, então, principiaram a rolar em seu rosto fazendo borrar a maquiagem. Aliás, a maquiagem borrada era algo que praticamente definia sua vida pregressa. Quando ainda apanhava de Eduardo, mascarava seus hematomas pintando-se o mais que podia. Já as feridas de sua alma, disfarçava com um sorriso fake. Mas a pintura, a maquiagem, a farsa, sempre borrava-se à noite, depois que seu ex dormia e olhava-se no espelho do banheiro.
Júlia abraçou a amiga e a deixou chorar sem nada dizer por algum tempo. Era uma daquelas ocasiões em que a melhor comunicação não se dá por meio de palavras. Em que o abraço da amiga e sua mão a acariciar-lhe a cabeça de uma forma quase maternal, eram para Amanda como a mais perfeita linguagem. Porém, a despeito disso, sentia suas entranhas se contorcerem ao pensar em Clarice. Ela era um anjinho lindo, saudável e que a chamava de mamãe com os olhinhos brilhando e o coração transbordante de sentimento. E ela nada tinha a ver com aquilo no que seu casamento se transformara. Era uma vítima também e sofria por ver os maus tratos sofridos por sua querida mãe. Amanda chorou e chorou pensando nisso. Chorou até já não ter forças para chorar…
— Amanda, gostaria que visse uma pessoa. Ela me assistiu depois que Carla foi embora e fiquei daquele jeito.
Amanda lembrou do tempo em que Júlia emagreceu mais de trinta quilos após sua ex tê-la trocado por uma colega de trabalho bem mais nova que ela. A fase foi difícil, terrível. A auto estima de Júlia beirava a nulidade naquele período negro de sua vida. Somente após algum tempo sendo acompanhada por uma terapeuta especializada em lidar com pessoas "quebradas" emocionalmente é que Júlia conseguiu voltar a ter alguma fé em si mesma. E com o tempo recobrou sua auto estima e até mesmo voltou ao peso que tinha quando conheceu Carla. Decresceu trinta e oito quilos no total e voltou a pesar os sessenta e três iniciais.
— Essa sua amiga é a mesma que ajudou Lisa também?
— Sim. Laura é extraordinária, Amanda! Dê a ela e a si mesma uma chance. Lembre-se do significado de seu nome…
Os olhos de Amanda marejaram novamente. Ela olhou para Júlia e balançou afirmativamente a cabeça. Lembrou-se do ministro religioso que celebrou seu casamento dizendo a Eduardo: "Nunca deixe de amar esta mulher com todo o seu coração, pois seu nome significa Digna de ser amada…"
(Fim do capítulo um.)
A vida parecia tê-la escolhido para as agruras e desilusões destinadas aos esquecidos. Durante muitos anos apanhou, apanhou e apanhou… e ainda continua apanhando. Agora já não mais do ex marido ébrio com quem fora casada por oito anos, mas de seus paradigmas, alguns bastante longevos, e daquilo que se imprimiu em sua mente mais profunda a respeito dos homens e da vida. "Homens não prestam. São todos iguais", ouvia sua irmã mais velha dizer desde que era uma garotinha. Ana Paula, a primogênita, atualmente já passava dos cinquenta, beirava os sessenta, na verdade, e, em seu atual e quarto casamento, mais uma vez sofria com os mesmíssimos infortúnios que sofrera nos relacionamentos anteriores. Amanda achava que sua irmã era apenas azarada e péssima para escolher homens. Jamais associou o discurso da irmã ao fato de essa vivenciar com relevante precisão aquilo que apregoava há mais de trinta anos.
Após o término de seu conturbado matrimônio, a casa de sua mãe tornou a ser o lar de Amanda também, e voltar a trabalhar, agora, já não era apenas algo possível, mas uma necessidade. Essa era uma das coisas que Eduardo, o ex marido, a proibiu de fazer durante seus anos de casada. Agora, Clarice, sua filhinha de três anos, fica sob os cuidados de dona Edinalva, a avó, cinco dias por semana. Finalmente seu sonho de lecionar tornara-se realidade. Fez isso durante um ano antes de conhecer Eduardo e era apaixonada pelo que fazia. Mas ele a persuadiu a abandonar o emprego. "Você não precisa trabalhar, tenho um bom emprego e nada te falta, nem mesmo um carro novo para dirigir", dizia ele. Hoje o arrependimento por tê-lo ouvido era algo esmagador em sua alma. Odiava-se por haver escolhido uma escolha que não era a sua.
— Queria falar comigo, Júlia? – disse à diretora, que também é a dona do colégio e sua amiga de infância.
Contratar uma educadora com pouca experiência e tanto tempo sem lecionar, ou seja, fora "do mercado", não era algo que a empresária Júlia tinha por hábito fazer. Por essa razão, decidir colocar Amanda em sua folha de pagamentos foi uma decisão tomada por Júlia, a amiga, que no início de seu negócio recebeu de sua contratada o estímulo necessário para iniciar o empreendimento que hoje se havia tornado uma respeitada unidade de ensino.
Júlia deu um longo suspiro antes de dizer:
— Amanda, por que estava aqui no sábado?
— Ora, Clarice estava com o pai e tinha umas pendências pra eu resolver e…
— Amanda, para!!! Até quando vai fugir de voltar a viver? Até quando vai viver no passado e criar um futuro sombrio para si?
— Meu trabalho e minha filha são minha vida, Júlia. Não sei do que está falando!
— Sim, parece que não sabe, Amanda. Até mesmo colocou o trabalho na frente de sua filha. Não percebe o significado disso?
Amanda arregalou os olhos e calou-se. As palavras de Júlia tiveram o impacto de uma experiência de natureza epifânica. Bateram em seu coração e destruíram uma espécie de invólucro, de carapaça, de envoltório, duro como diamante. Pela primeira vez na vida pôde enxergar que não dava a Clarice todo o amor que, como mãe, devia-lhe. Não se podia dizer que a tratava mal, mas tampouco era a melhor mãe do mundo quando o assunto era amor, carinho e dedicação. Percebeu também que isso ocorria porque, de maneira inconsciente, atribuía ao nascimento de sua filha o fato de ter postergado o fim do abusivo relacionamento com seu belicoso ex marido. Entretanto, isso estava longe de ser uma atribuição justa, pois antes mesmo de se entregar à maternidade, já sofria abusos e era maltratada tanto física quanto emocionalmente. As lágrimas, então, principiaram a rolar em seu rosto fazendo borrar a maquiagem. Aliás, a maquiagem borrada era algo que praticamente definia sua vida pregressa. Quando ainda apanhava de Eduardo, mascarava seus hematomas pintando-se o mais que podia. Já as feridas de sua alma, disfarçava com um sorriso fake. Mas a pintura, a maquiagem, a farsa, sempre borrava-se à noite, depois que seu ex dormia e olhava-se no espelho do banheiro.
Júlia abraçou a amiga e a deixou chorar sem nada dizer por algum tempo. Era uma daquelas ocasiões em que a melhor comunicação não se dá por meio de palavras. Em que o abraço da amiga e sua mão a acariciar-lhe a cabeça de uma forma quase maternal, eram para Amanda como a mais perfeita linguagem. Porém, a despeito disso, sentia suas entranhas se contorcerem ao pensar em Clarice. Ela era um anjinho lindo, saudável e que a chamava de mamãe com os olhinhos brilhando e o coração transbordante de sentimento. E ela nada tinha a ver com aquilo no que seu casamento se transformara. Era uma vítima também e sofria por ver os maus tratos sofridos por sua querida mãe. Amanda chorou e chorou pensando nisso. Chorou até já não ter forças para chorar…
— Amanda, gostaria que visse uma pessoa. Ela me assistiu depois que Carla foi embora e fiquei daquele jeito.
Amanda lembrou do tempo em que Júlia emagreceu mais de trinta quilos após sua ex tê-la trocado por uma colega de trabalho bem mais nova que ela. A fase foi difícil, terrível. A auto estima de Júlia beirava a nulidade naquele período negro de sua vida. Somente após algum tempo sendo acompanhada por uma terapeuta especializada em lidar com pessoas "quebradas" emocionalmente é que Júlia conseguiu voltar a ter alguma fé em si mesma. E com o tempo recobrou sua auto estima e até mesmo voltou ao peso que tinha quando conheceu Carla. Decresceu trinta e oito quilos no total e voltou a pesar os sessenta e três iniciais.
— Essa sua amiga é a mesma que ajudou Lisa também?
— Sim. Laura é extraordinária, Amanda! Dê a ela e a si mesma uma chance. Lembre-se do significado de seu nome…
Os olhos de Amanda marejaram novamente. Ela olhou para Júlia e balançou afirmativamente a cabeça. Lembrou-se do ministro religioso que celebrou seu casamento dizendo a Eduardo: "Nunca deixe de amar esta mulher com todo o seu coração, pois seu nome significa Digna de ser amada…"
(Fim do capítulo um.)