245 O Pastor
Pelo monte o tempo não contava. Tudo o que haveria para fazer era olhar para longe, esculpir pequenos bonecos em pedaços de madeira, escondê-los onde calhasse e seguir com o gado um pouco mais acima, mais para o lado da ribeira. Havia dias que não via ninguém, outros ficava a conversar com quem chamasse para saber coisas. Perguntava e respondia-se, abrindo brechas no entendimento porque, está bem de ver, para receber respostas à sua maneira nem valia a pena questionar. O resto do dia amolecia tudo e até as vacas pastavam devagar, cansadas do calor e do sol forte. Quando as queria afagar mostrava-lhes sal e vinham apressadas lambê-lo das suas mãos em concha. Era um agrado que lhes fazia e pesava-lhe no lombo carregar a saca pela encosta, sem largar a botija da água ou o farnel pendurado no cajado. Quando já esgotara a diversão, puxava da gaita-de-beiços e arrancava modinhas populares, algumas com variantes à procura de novidades sonoras. Ouvia tudo. O seixo a bater na pedra, a cobra a raspar o capim seco, um ou outro pássaro que viesse trinar ao desafio com quem não se mostrava. Adivinhava os ninhos, conhecia as pedras por inteiro, sabia quando o tempo ia mudar. Cheirava-o olhando o céu e as nuvens. Nos dias mansos dormia dez minutos de cada vez e tinha sonhos fortes quase sempre. Eram rápidos, mas quando os sonhava tinham a pressa travada e eram completos ainda que estranhos. Hoje, por exemplo, ele não sabia do gado, não era pastor, tinha vestido um fato novo e trazia um cravo na lapela. Ia casar-se quando acordou ainda com as vacas ao redor e sem saber quem era ela.