Doce devir

A antiga casa no final da rua extensa, localizada no subúrbio, precisava de reformas. Os donos já moravam em outro e melhor endereço há seis meses, deixando abandonado o casebre, até que, sem pressa, a reforma começasse para que em fim, alguém pudesse alugá-lo. O telhado exibia um véu finíssimo e interminável de teias que se entrecruzavam alvas, quase sem fim. O assoalho já estava incompleto, deixando o chão irregular. O cheiro era de mofo, e as paredes já eram pintadas pelas sardas das respirações há muito passadas. Contratados dois pedreiros, estes começariam o trabalho somente no fim da semana, que ainda estava no início, com a calma e a vagareza com que as obras normalmente são realizadas, sendo toda a apreensão somente dos donos, enquanto os relógios dos trabalhadores seguem seu ritmo próprio, na contramão das voltas dadas pelos demais ponteiros tradicionais. Combinaram assim os dois pedreiros de irem até a casa dois dias antes do início da reforma para organizar e inspecionar o local. Ao chegarem, ouviram de pronto um ruído vindo do interior da casa. Acostumados aos mistérios que geralmente envolvem as velhas casas, dirigiram-se ao último cômodo, onde um gato maltrapilho, magro e de grandes olhos verdes aguardava sentado sobre um banco de madeira já roído pelos cupins e pelo tempo. Como o bichano miasse insistentemente, perceberam que havia algo que ele tentava, à sua maneira, lhes informar. - O que que foi? Tá com fome ou viu algum espírito? - Disse um deles, sorrindo. O gato pulou do banco e agitadíssimo entrou no cubículo ao lado, local que provavelmente era destinado ao banheiro pelos moradores. Os homens seguiram o animal e se depararam com o corpo de um homem de meia idade que parecia ter acabado de morrer. Talvez fosse o dono do gato, pensaram. - Melhor chamarmos a polícia. A gente não conhece o homem e nem sabe o que houve. Podemos acabar nos envolvendo em algo sério, - explicou o pedreiro, tirando o celular do bolso. O outro assentiu com a cabeça. O gato rondava sem trégua o corpo estendido no chão. Em quinze minutos chegaram dois policiais e buscavam entender o ocorrido, ouvindo as explicações dos trabalhadores que haviam chegado apenas alguns minutos antes e não tinham detalhes para expor. Ao tentar movimentar o corpo para fora da casa, um dos policiais foi violentamente atacado pelo gato, que com uma força inexplicável o feriu no tornozelo de tal forma, que o homem, perdendo sangue, precisou ser hospitalizado. O bicho, que antes nunca tinha sido visto nas redondezas, sumiu entre os muros vizinhos. O policial ganhou uma profunda e expressiva cicatriz. Cicatriz exatamente igual a encontrada pelo legista no tornozelo do cadáver.