Uma viagem por Olinda
Encontrei com Dino num bar perto da Praça do Carmo antes das dez da noite. Quando cheguei no bar ele estava encostado num pé de árvore, com um cigarro nos dedos. Em cima da mesa tinha um cinzeiro com várias pontas e ele já tinha bebido três cervejas.
- E ai, Dinossauro. – Falei.
- Senta ai, mano.
Ele largou o cigarro no cinzeiro e sentou-se junto comigo.
Fez sinal pra o garçom trazer um copo e outra cerveja e passou as mãos nos cabelos, ansioso.
- O que você tem? – Perguntei.
- Porra mano. É essa mina.
- Qual?
- Uma que conheci aqui pelas Olindas.
- E ai?
- Caralho. É a mulher perfeita.
- E isso existe?
- Perfeita pra mim. É isso.
- Descreva.
- Nem dá pra descrever. Só posso dizer que quando ela está perto eu só consigo pensar em tirar a roupa dela todinha.
- Então é um caso de tesão.
- Antes fosse só isso. Essa mulher me deixa louco. Uma hora ela parece que quer, outra hora parece que não quer. E eu fico nessa. Com cara de otário.
- Então dê a real logo. Se não for pra rolar, parte pra outra.
- Ah Mano. O caso é que ela tem um boy. O cara é o maior otário. Mas faz todos os gostos dela. É todo certinho. Sempre chega no horário.
- Entendo.
- Pior que ela já traiu. Ele soube e ficou por isso mesmo.
- Então?
- Então que eu não quero ser amante. E acho que ela só quer brincar comigo.
- Porra Dino. Pula fora. Pelo jeito ela é Raposa.
- Pois é cara. Com rabo e tudo.
O garçom chegou com a cerveja, encheu o meu copo e foi embora.
Brindamos e eu bebi sem dizer nada.
- Eu não sei lidar com isso tudo não – Dino continuou.
- Olha cara. Em Olinda é assim. Quem não é corno bota gaia.
- Em Recife é diferente?
- Não muito. Mas o rebuceteio aqui em Olinda é intensificado. Deve ser por causa do carnaval... A cidade fica carregada com a energia da safadeza.
- Deve ser. Mas pra piorar, meu velho, ela é filha de Exu.
- E é?
- Foi o que me disse.
- Faz diferença pra você?
- De forma alguma. Mas filho de Exu não gosta de andar reto. E não gosta de ficar parado.
- E você quer ficar parado?
- Não, cacete. Eu quero ela. Nem que seja só pra dar errado mesmo.
Dino virou o copo e fez sinal pro garçom novamente.
- Minha joia! Desce um quartinho de alcatrão, com mel e limão... e um caldinho de caldeirada.
- Traz dois – Eu emendei.
- Sim, meu patrão. – Respondeu o garçom.
- Tem Malboro ai? – Dino perguntou.
- Só tem Hollywood e Gift.
- Me dá um Hollywood vermelho.
- Carteira ou unidade?
- Carteira. Se for pra morrer, é melhor acelerar logo o processo.
O garçom virou as costas e Dino acendeu o último cigarro que tinha no bolso.
- Você fuma?
- Não.
- É mesmo. Toda vez eu me esqueço. Mas é por que tu tens cara de fumante.
- Talvez na encarnação passada. Nessa eu só fumo um baseado de vez em sempre.
- É melhor. Sai mais barato.
- Mas e ai? E como vai ficar a história com a menina?
- Eu vou encontrar ela mais tarde.
- E está bebendo assim?
- É pra criar coragem, cacete. De hoje não passa.
- É esperar pra ver.
- E você, veio fazer o que pro lado de cá?
- Eu estava precisando sair um pouco de Recife.
- Bem. Aqui é tudo melhor.
- A brisa com certeza é melhor.
- Veio encontrar alguém em particular?
- Quando você disse que ia estar por aqui eu resolvi dar uma de doido e vir. Tamires deve estar por ai com os amigos lombrosos dela. Talvez Stefanie também esteja. Mas essa ai parece que está meio chateada comigo, ou talvez só esteja em outra. Mas tanto faz. Eu só estava precisando de um pouco de liberdade. A quarentena fodeu o meu juízo.
- Pois é meu irmão. Fodeu o de todos nós.
O garçom chegou com o alcatrão e o cigarro e deixou em cima da mesa.
Dino tomou uma dose e me ofereceu a bebida.
- Meu irmão. Eu não aguento nem o cheiro de alcatrão.
- Tu é fresco é?
- Devo ser.
- Bora porra. Bebe.
Tomei uma dose a contragosto e lavei com um gole de cerveja e do caldinho.
Me encostei na cadeira e respirei fundo o ar de maresia.
- Dino. Digo a você que vou me mudar pra cá qualquer dia desses.
- Venha. Vai ficar mais fácil de nos encontrarmos.
- Pois é. E estou precisando mudar de ares. Sem contar que vai me ajudar com a escrita.
Dino acendeu um cigarro no outro e me mostrou um guardanapo com alguns rabiscos.
- Estava tentando escrever algo pra a mina. Mas não tá saindo nada.
- Quando tiver que sair, vai sair.
- Pois é. Pois é. Mas tá complicado.
Dino se recostou na cadeira e eu percebi que duas mulheres se aproximaram da mesa.
Uma era negra, magra e alta, de cabelo curto, e outra era mais baixa e com seios enormes.
A mais baixa passou a mão no rosto de Dino e deu um beijo na testa dele. A mais alta apenas cumprimentou de longe e deixou um sorriso pra mim.
- Como é que você está hoje? Dino? – A mais baixa perguntou.
- Estou bem, bê. – Ele respondeu oferecendo o cigarro.
Ela deu um trago e perguntou.
- Quem é o seu amigo?
- Eita. Foi mal. Achei que vocês se conheciam.
Me levantei da cadeira e estendi a mão para cumprimentar a moça.
- Meu nome é Mari. – Ela disse.
- Rômulo.
- Ah. O escritor.
- Só as vezes.
Ela riu.
- Dino vive me mostrando suas coisas. Eu só achei que você fosse mais velho.
- Eu só não tenho a cara.
Ela riu novamente.
- O que sua amiga tem? – Perguntei.
- Ela e Dino não estão se falando. Estão coisados.
- Ah. Tô ligado.
- É besteira. Frescura. Mas é a vida. – Ela respondeu.
A moça mais magra fez sinal para Mari, mostrando um pouco de irritação e começou a andar até a beira-mar.
- Preciso ir, meninos. Vamos encontrar um pessoal lá no Varandas.
- Vai lá. – Falou Dino. – Fica com o cigarro.
- Obrigada, bebê.
- Disponha.
As duas se afastaram e Dino se levantou pra atender o celular.
Fiquei sentado na mesa tomando minha cerveja e depois de alguns minutos Dino retornou com um sorriso no rosto.
- Mano. Vou nessa.
- Caça a raposa?
- E apois!
- Boa sorte então.
- Vou acertar a minha parte da conta. Você vai ficar aqui mesmo?
- Vou terminar a breja e vou sair pra dar uma volta.
- Beleza. Qualquer coisa me liga mais tarde. A Raposa tem que voltar pra casa cedo... pra dar conta ao Alce. Dai pode ser que dê pra tomar mais algumas antes de você voltar pra casa.
- Beleza. – Respondi.
Pagamos a conta e Dino me deu um abraço antes de ir embora.
Terminei a cerveja e fui andando em direção aos Quatro Cantos. Eu não costumava andar por Olinda fora do período de carnaval, mas sentia uma familiaridade enorme com o lugar. Como se aquelas ruas já tivessem sido minha casa algum dia. Andei por um bom tempo, antes de me tocar que tinha perdido qualquer sentido de para onde eu estava indo, enquanto pensava na minha vida e nas tantas coisas que rondavam a minha cabeça.
Parei para me orientar em uma esquina, onde a luz amarelada do poste piscava como se estivesse prestes a queimar, tornando o ambiente ainda mais fantasmagórico do que o usual.
Não havia ninguém ao meu redor e eu não reconhecia nada no lugar.
Pensei em voltar pela rua que tinha vindo, mas ai percebi uma casa com a porta aberta e uma luz vermelha vindo do interior. Lá dentro eu podia ouvir um canto baixo e o barulho de pessoas batendo palmas.
Fui até a porta e dei de cara com uma mulher de meia idade, vestida de vermelho e preto saindo do meio da fumaça do incenso que queimava lá dentro.
- Boa noite. – Ela disse.
- Boa noite. – Respondi.
- Tá perdido, moço?
- Um pouco.
- Parece muito.
- É verdade. Não faço ideia de onde estou.
- Meu bem. Você está na porta da casa dos mortos.
- A senhora parece bem viva. – Falei num leve tom de ironia.
- A senhora está no céu, moço.
- Desculpa. Você parece bem viva.
- Pra morrer se tem que estar vivo.
- É verdade.
- O que você está procurando?
- O caminho de volta pra a Praça do Carmo.
- Além disso, moço.
- Como assim?
- Da pra ver nos seus olhos... Eu posso ver sua procura. É claro como se fosse a luz do dia.
- Então o que é? Por que nem eu mesmo sei.
- Moço. Você parece que procura um amor. Mas tem medo nunca encontrar. Mesmo assim continua procurando.
- Minha mãe sempre disse que eu era muito teimoso.
- Você só teima por que acredita.
- Ou talvez seja só por birra mesmo. Por que no fundo eu não acredito mais.
- Se você está dizendo, moço. Quem sou eu pra discordar.
A mulher me deu um abraço e um beijo na testa e falou
- Não deixe que a vida roube o seu sorriso, meu bem. E deixe o passado no passado. Olhe sempre pra frente.
- Como? Como fazer isso é que é o problema... – Falei confuso.
- A praça fica pra lá. – Ela disse apontando em direção de uma esquina. – Preciso entrar agora.
Cumprimentei a mulher com a cabeça e segui na direção que ela tinha dito.
Não demorou muito pra que eu reconhecesse onde eu estava novamente.
Parei numa barraca de beira de esquina e pedi uma lata de cerveja.
O vendedor me entregou a lata e eu deixei o dinheiro na bancada.
Uma moça chegou do meu lado e pediu uma garrafa de vinho carreteiro e entregou um punhado de moedas pra o dono da barraca.
- Está faltando um real. – Disse o vendedor, de má vontade para a garota.
Tirei uma moeda do bolso e entreguei a ele.
- Agora está tudo certo.
- Obrigada. – Ela falou para mim depois de pegar a garrafa.
- Não foi nada.
A garota me deu um abraço e se afastou.
Sentei na calçada e abri a lata de cerveja. Dei um gole e olhei pra a lua que corria pelo meio do céu. Era a primeira lua cheia do ano.
- Posso sentar com você – A garota falou, se aproximando novamente, com a garrafa de vinho na mão.
Ela tinha os lábios e a língua roxa, por causa da bebida, denunciando que aquela não era a primeira garrafa da noite.
- Pode sim. – Falei com um meio sorriso no rosto.
Ela se sentou e falou.
- Estou com os pés que não aguento. Andei bastante hoje.
- É bom que você já se prepara pro carnaval.
- Menino. Esse vai ser o melhor carnaval de todos.
- Parece que vai ser mesmo.
- Como é o seu nome?
- Rômulo. E o seu?
- Pode me chamar de Maroca.
Me virei para lhe dar um beijo no rosto e ela se virou e me beijou nos lábios.
Sua língua gelada correu por dentro da minha boca e eu senti o gosto do vinho e de cigarro.
Ela se afastou e sorriu.
- Pronto. Esse foi o meu primeiro beijo do ano.
- Uau. – Falei, com um sorriso sem graça.
- Achou ruim?
- Não. Só não estava esperando. Não é algo que me acontece muitas vezes.
- Você é muito sério. Devia sorrir mais. Talvez assim fosse algo mais frequente.
- Vou pensar sobre isso.
- Muito bem. Pense mesmo.
Maroca então se levantou e falou.
- A gente se vê por ai.
- Certo. – Respondi.
Ela saiu desembestada pela rua e desapareceu em uma esquina, me deixando sozinho com os meus pensamentos.
Mas na minha boca, o gosto do vinho ainda estava presente.