PALMÃO, AVURTADO E AIVIM

Na roça, minha mãe preparava o almoço, quando eu devia ter aproximadamene 10 anos. Era frango caipira, daqueles que existiam antes de inventarem os frangos universitários de granja. Galináceo carijó misturado com frango índio, caneludo e pescoçudo. Primeiro ela matou o bicho no seu estilo franco de matar frango que beirava o requinte de crueldade. Pegava-o pela cabeça e rodava feito um ventilador, depois pegava os pés e puxava a cabeça, que dava um mortal estralo de pescoço desconjuntando. Sangrava-o com uma faca afiada em pedra de amolar e separava o sangue para o molho pardo. Mollhava-o n'água quente para amolecer as penas e íamos para fora, no quintal, para o cerimonial de depenação e depenujamento (não sei se essa palavra existe, mas existe a ação). Depois eu o sapecaria no fogo, abriria e o faria em pedaços. O incrível é que eu gostava de fazer isso. Não de matar, mas sim as outras partes, que mais se aproximam da ciência anatômica veterinária avançada. Eu era um Vesálio das galinhas. Tá bom, vou direto ao assunto. Enquanto depenávamos o infeliz animal, imolado para nos redimir da fome, eis que apareceu a cumade Maria, esposa de um agregado da fazenda chamado Dito, ou Nego, dependendo do grau de intimidade. Então Maria disse (naquela época adultos não cumprimentavam as crianças, eu praticamente não existia):

_ Boa dia, cumade V.!

Esse era, e ainda é, o nome da minha mãe.

_ Boa dia, Cumade! Você tá boa?

Boa, boa mesmo a cumade Maria nunca foi ou esteve. Sempre com sua perrengueira que ervas e benzedeiras não davam jeito. Resultado de 9 partos seguidos, todo mundo dizia. Era baixinha, curva, entortada para o lado feito a Torre de Pisa, cabelo que parecia aqueles fiapos de manga chupada, não exatamente gorda, mas com uma barriga prá lá de saliente. Espelho de uma alma fofoqueira, acreditava minha mãe, que também apreciava a maledicência a respeito da vida alheia. Naquela época e lugares, as pessoas levavam as perguntas bastante a sério. Não conheciam essa arte que é a retórica. Por isso ela respondeu:

_ Uai! cumade boa mesmo eu não tô não. Tô com uma danada de uma falta de ar. Acho que é vento encanado. O que piora ainda mais a espinhela caída. Tem também o problema do bico de papagaio e a dor na cacunda. E agora apareceu a dor nos "palmão"...

Palmão! Palmas para ela e para o Tocantins! Isso é demais. Viva São Marcos Bagno! Adoro essas simplificações fonéticas. Ou complicações, conforme o caso. Falei baixinho, menino aplicado na escola que era, perguntando in off para minha mãe:

_ Mãe, o que é palmão?

_ É pulmão meu fio. Agora cala a boca.

Depois de tanta delicadeza, virei uma pedra. Havia uma regra: não podíamos rir da "simplicidade" das pessoas. Para mim ningúem é simples, mas era assim que as pessoas que se achavam mais sabichonas pensavam. Maria enrolava, enrolava e não ia embora. Então minha mãe convidou:

_ Uai cumade, fica pra almoçar!

_ Se não for incomadar vou ficar mesmo. E o cumpade I., onde tá ele?

Cumpade I. era meu pai.

_ Tá lá mostrando o paiol e os porcos para o Abílio e para o Ico Capador de Porca.

As duas entraram, e senti-me liberado para acompanhar os dois visitantes lá no paiol e no chiqueiro. Minha mãe achou uma ajudante pra lá de interessada, apesar de suas complicações palmônicas.

...

Fui até o paiol onde o Abílio, afilhado de casamento de meus pais, ainda parlamentava com meu pai. Abílio era um sujeito aprumado e gostava de ficar em cima do cavalo. Nasceu com vitiligo, com o tempo virou um albino, era então o Abílio Albino. Era rosa, uma vez que tinha perdido toda a morenice herdada de seus pais. Era catireiro, pois vivia de criar e comerciar gado. Por isso admirava a labuta de roceiros como meu pai, daqueles que se entragavam à labuta diária que a atividade de ser roceiro exigia. Voltemos. Enquanto isso, o Ico amolava as facas para o cerimonial de capação, que não vou descrever, em respeito aos estômagos sensíveis. Depois de olhar os porcos do mangueiro e os do chiqueiro, agora apreciavam o paiol, que naquele mês de junho estava abarrotado de milho em espiga. Era um imenso paiol onde se armazenava milho para o ano inteiro, até a próxima colheita. Destinava-se principalmente à alimentação dos porcos, mas também das galinhas e, se fosse necessário, até do gado leiteiro. Colocávamos nele cerca de 40 carros de boi lotados de milho. Um carro de boi correspondia a 40 balaios, e um balaio a 40 atilhos, e o atilho a 4 espigas. Assim: 4x40x40x40= 256.000 espigas! Todas eram jogadas uma por uma no paiol, para separar o restolho, milho mais fraco que era consumido primeiro, guardado separadamente, para evitar o caruncho e outras pragas. Era milho a "reviria" (revelia?). E meu pai disse:

_ Viu o milho Abílio? É tudo híbrido. Semente da Agroceres.

_ É memo padim. É muito mio. É o mió dos mio. É um mio danado de avurtado de bão!

Fiquei imaginando a felicidade dos porcos de comer um milho tão "avurtado de bão". Não penso no erro de pronúncia, mas sim no refinamento do vocabulário: avultado! Poucos hoje apuram tando o paladar das palavras quanto nesse caso. Bastaria um "muito", um "demais", mas não, foi lá não sei onde buscar aquela palavra que é extremamente bela: avultado. Hoje o cumpade Abílio, ali mesmo na roça, deve ter Facebook e ZapZap, onde talvez não utilize mais essa palavra, é só mt ou d+, e nada de avurtado. Depois disso foi a capação de porcas, que não vou contar. Pois era uma carnificina, na qual eu obrigatoriamente tinha de participar como auxiliar.

...

Junho e julho eram os meses quando fazíamos farinha e polvilho. E naquele dia fazíamos polvilho. De manhã moíamos a mandioca e depois lavávamos a massa em imensos coadores de tecido fino. A água com o amido ficava depositada em imensos galões, que ali ficavam até o final da tarde. Quando era retirada a água e o amido ficava depositado no fundo. Eram retirados em imensos nacos e secados ao sol em grandes quaradores, estrados suspensos e forrados com tecidos de algodão. Secavam, eram quebrados, secavam, eram esfarelados, secavam, coados em peneiras finas, secavam. Por fim o polvilho, o que demandava alguns dias. Tinha polvilho em todos esses estágios. No final da tarde, antes de descascar a mandioca do dia seguinte, íamos nós, cinco meninos e minha mãe, para processar o polvilho nos quaradores. O polvilho era branco de doer os olhos, ele ficava que era azul de tanta brancura. No final daquele dia chegou outra comadre de minha mãe. Essa era ao mesmo tempo comadre e afilhada de casamento. Era uma mulher espadaúda, larga, alta, não muito gorda, sem cintura, e curva da nuca para cima. Aquilo devia ser o tal bico de papagaio, onde se divisam Tocantins, Maranhão e Pará. A gente era menino de escola, eu pessoalmente gostava de geografia. Tinha aquelas propagandas do governo da ditatura, enfatizando as obras das estradas federais, valorizando o ministro Andreazza. Por maldade eu a apelidei de Belém-Brasília, não por causa do Bico do Papagaio, sim porque era comprida, larga... (não sei se digo). Digo: comprida, larga e malacabada. Seu nome era também cumade Maria, mas para diferenciar era a Maria Brás. Era meio aparentada do Abílio. Era negra, negra com cabelo de índio. Analfabeta faziam mais de 20 gerações, talvez desde Adão e Eva, ou desde Lucy (in the sky with diamonds). Ela chegou e de pronto começou a ajudar minha mãe. Minha mãe gostava dela, era de pouca conversa, recatada, e a ouvia sempre concordando. Como minha mãe achava que sempre tinha a razão, isso era ótimo. Nós também gostávamos dela: ela nos cumprimentava!

_ Tarde Madrinha! Tarde mininos!

_ Taaaaaarde!

Respondemos em coro uníssono. Ela de pronto se juntou ao trabalho de esmagar pelotas de polvilho.

_ Madrinha esse porvio tá que dá gosto apertar. Maciiiiiiiiinho! Vai dar uns danados de uns pães de queijo.

_ Agradecida cumade!

Pra uma, comade; pra outra, madrinha. Eram as duas coisas. O sol começou a descambar no poente, que na canícula dava um ar sombrio, mas muito bonito. Esmagar polvilho virava poesia. O sol fazia sombra nos imensos nacos, uma metade sombra, a outra um branco que doía... branco quase azul. Então Maria Brás arrematou:

_ O poivio tá aivim, aivim!

Falou mais para si mesma, do que para nós. Tudo ficou mais bonito com esse arremate da poetisa Maria Brás. Aivim é muito finura e beleza. Aivim é mais belo que alvinho. Aivim, branquim... pura candura de uma língua que não mais dura. A língua sempre muda e às vezes nos deixa à míngua.