A Aroeira
Seus olhos se cerrariam em poucos segundos, mas ela ainda fitava aquelas portas do armário à sua frente. Não as via, pois seus pensamentos a levavam para outro mundo, aquele que não conhecia, que temia e que ansiava. Pensou na morte como se ela espreitasse ao seu lado. Queria desejá-la, mas não conseguia comandar seus pensamentos, e aí se lembrou da aroeira, a árvore. Como ela, centenária, mas não eterna. Forte, mas não imbatível. Como ela, semente de várias gerações, testemunha de incontáveis histórias.
A claridade começava a avançar pelo quarto e a iluminar seus melhores pensamentos, permeados pela visão da aroeira. Não se tratava propriamente de uma visão, pois é provável que ela jamais tenha visto uma aroeira. Ela sabia, no entanto, que ambas tinham muito em comum. Assim como a árvore, tinha vivido muito mais do que a maioria que a cercava. Atualmente, lutava mais frequentemente para se manter de pé, firme. Ao contrário da aroeira, no entanto, achava que era capaz de sentir quando o fim se aproximasse. E era o que sentia naquele momento.
Lembrou-se mais nitidamente de seus tempos de moça. Nunca foi tão feliz, embora tenha vivido anos difíceis de guerra. De seu casamento, vieram as lembranças da festa interminável, da casa cheia de crianças e das barrigas avantajadas de tantas gestações. A lembrança do marido falecido já andava bem apagada; não por culpa dele ou dela. Refletiu rapidamente, como se tivesse pressa, sobre quão esquisito era pensar nele quando agora tinha idade para ser sua mãe. Percebeu que, depois de tanto tempo de viuvez, viúva e falecido tornam-se pessoas estranhas. Perguntas como “o que ele faria nessa situação?” não mais cabiam, pois tudo mudou tanto que aquela pessoa não poderia pertencer mesmo a esse mundo. Desculpou-se por esses pensamentos e teve pressa em resgatar outras lembranças.
Tinha que pensar nos seus descendentes, mas as imagens de suas amigas surgiram em primeiro plano. Essa mulher teve inúmeros papeis, mas o principal foi o de amiga. Daquelas que não cobram nada e doam tudo. Amiga para além da vida. Quis o destino que fosse a última a partir. Por isso chorou a perda de todas elas. As tardias marcas de idade na sua pele devem-se à partida de suas amigas.
Agora sim, seus filhos. Não conseguia eleger um ou outro. Pensava em todos como um só. Pensou especialmente no sofrimento de cada um deles. Mas não sentiu ansiedade ou tristeza. Tinha aprendido que é impossível livrar-se de sofrimentos. Eles fazem parte da vida. Costuma sentir algum tipo de culpa para o excesso de sofrimento de um ou outro, mas era apenas uma forma de minimiza-lo. Nesse momento, redimiu-se de qualquer culpa, e achou sinceramente que, no final das contas, cada um tinha a contraparte da tristeza de que era merecedor.
Deixou seus últimos pensamentos para aquele que os dominou durante toda a vida: Deus. Melhor dizendo, seus intermediários. Eram tantos os santos, beatos e afins que temia não lembrar-lhes o nome. Mas lembrou, e nessa ordem, primeiro os homens: Frei Galvão, Santo Antonio Maria Claret, São José, São Judas Tadeu, várias versões de Nossa Senhora: Aparecida, das Graças, de Fátima, de Lourdes, da Conceição, e outras tantas santas: Luzia, Ana, Cecília, etc. Dessa vez não pediu nada; apenas agradeceu por esse momento de paz e por todas as graças que acreditava ter conseguido com a ajuda de todos eles.
Afinal, reviu sua vida como num filme relâmpago, e sentiu paz. Sabia que tudo foi vivido da melhor forma possível. Sabia que poderia ter sido melhor, mas naquele instante todas as frustrações lhe pareciam ridículas. Ela sentia algo que podia ser a felicidade.
Desejou descansar eternamente sob a sombra de uma aroeira. Fechou os olhos e despediu-se de si mesma.
Havia passado poucos minutos quando voltou a abrir os olhos, reencontrou sua vida de sempre, concluiu que havia sonhado, mas isso não lhe tirou a sensação de ter se livrado do temor da morte, e ter aliviado sua alma. Sentiu-se, mais do que nunca, preparada para partir. E desejou, mais do que nunca, ficar. A sombra da aroeira também saberia esperar um pouco mais.
(Para Ernesta, 2013)