A Sexta Hora [inacabado]
É a sexta hora, mas o sol é obscurecido por nuvens tempestuosas até que sua luz seja totalmente tragada e as trevas imperem soberanas. O vento feroz faz a chuva ferir como areia nos corpos lacerados dos três homens nas cruzes. A treva enrodilhada e espessa, ela mesma um poder que os exaure, tomando-lhes o peito, o coração e a mente. O homem do meio, aquele que é chamado Cristo, afunda na grande e envolvente enchente da morte.
De súbito, uma voz irrompe mais alta do que a orquestra sinistra dos elementos e sobrepuja o caos reinante na mente de Cristo.
- Vede, o meu servo procederá com prudência; será engrandecido e elevado, e muito sublime.
Alguém cita-lhe as escrituras, cita-lhe o profeta Isaías, o mesmo profeta ao qual Cristo se referiu um dia na sinagoga como sinal de sua própria divindade.
Ele abre sua boca para gritar, mas sua voz é um sussurro débil:
- Quem está aí?
- Exatamente como muitos pasmaram à vista dele - continua citando Isaías, a voz - o seu parecer estava tão desfigurado, mais do que o de outro qualquer, e a sua aparência mais do que a dos outros filhos dos homens. Ele foi subindo como renovo e como raiz de uma terra seca, não tinha parecer nem formosura, e, olhando nós para ele, nenhuma beleza víamos para que o desejássemos; era desprezado, e o mais indigno entre os homens, homem de dores, e experimentado no sofrimento. Como um de quem os homens escondiam o rosto, era desprezado, e não fizemos dele caso algum.
- Quem és tu? Tendes idéia de com quem falas?
- O profeta me contou: “Verdadeiramente ele tomou sobre si as nossas enfermidades, e as nossas dores levou sobre si; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados”.
- Pára de citar as palavras de outrem e me responde com tuas próprias, segundo teu falho discernimento dizes-me: Porque pensas poder escapar da divina ira vindo aqui para perturbar-me?
O outro riu-se divertido e tornou a citar o profeta Isaías:
- Todavia, ao Senhor agradou moê-lo, fazendo-o enfermar; quando a sua alma se puser por expiação do pecado.
Cristo sente um frêmito de puro horror, pois começa a decifrar as palavras do estranho interlocutor.
- Sabes algo que não deveria ser sabido por nenhum mortal.
- Ah, mas não sou mortal. Não mais. Graças a ti e a teu pai celestial, Não me encontro mais entre aqueles cujas almas possuem a faculdade de desencarnar. Mas vejo que tua onisciência partiu para longe de ti, juntamente com tua onipotência e, como estou aqui a menos de um passo de ti, penso que teu pai já não vislumbra mais tua patética figura.
- Meu Pai de tudo sabe. Por que usas a palavra onisciência se nem conheces seu significado?
- Teu pai só vê o que deseja ver. Sua onisciência é limitada por sua divina vontade.
- Que dizes? Estás distorcendo as escrituras.
- Oh, então me dizei quem sou, Cristo. Apresenta-me se tu ainda és onisciente.
- Eu, eu...
- Não podes porque teu pai já não vela por ti, porque o Espírito dele não está mais ao teu alcance e porque nesta fortaleza de trevas, neste momento único, estás totalmente à minha mercê.
- Como poderias saber disto, como concebeste este momento? Como soubeste da cruz?
- Do madeiro, Cristo. Sempre pensei que serias enforcado, pendurado no madeiro, mas quando vi que os romanos crucificavam seus criminosos, percebi que tua morte seria um pouco mais dramática.
- Que queres de mim?
- Tu agora és Anátema, Cristo. Todos os pecados de todos os homens de todos os tempos fazem morada neste teu corpo conspurcado, todas as doenças te acometem, doenças que neste tempo nem mesmo foram descobertas, enfermidades vindouras, pragas reservadas para os distantes dias da Ira de teu pai. Jamais em tempo algum haverá um corpo como o teu, tão maldito quanto o teu. Teu sangue, filho de Deus, é o grilhão supremo. Estou aqui, Cristo, porque fico imaginando que sabor terá esse teu sangue.