Rua

Que a cidade existe com os seus bairros, avenidas e numerosas ruas, quase ninguém duvida. Apenas alguém com uma inclinação solipsista, egoísta, que considera real somente aquilo que vê e sente, poderá conjecturar o contrário: fora de sua visão, de seu sentir, nada existe.

Não que Pacheco fosse um insensível egoísta, incapaz de se colocar no lugar de outras pessoas e de ter um nível mínimo de empatia que o fizesse desconsiderar a amplitude e complexidade de todas as coisas, mas, o Pacheco estava mergulhado num fluxo incessante chamado rotina, essa coisa que se inicia todas as manhãs com um levantar apressado de cama, e que atravessa todo um dia com tarefas repetitivas, demarcadas pela mesma faixa de tempo, invariável, porque existem metas a serem alcançadas, contas a serem prestadas.

A paisagem das ruas pelas quais percorria na rotina passava despercebida. Aquela rotina a qual o Pacheco tinha de prestar explicações todos os dias, tirava dele a capacidade de observar os detalhes, as possíveis árvores existentes, a arquitetura dos prédios e casas, as pessoas, as calçadas, o comércio... as ruas dentro da rotina de Pacheco não existiam, porque eram palco para que as pendências de Pacheco sobressaíssem: às vezes, o palco é apenas um detalhe na peça, importando de sobremaneira a atuação do ator.

Ruas são ramificações que constituem o sistema circulatório de um grande ser chamado Cidade. As ruas que Pacheco usualmente trafegava, possuíam íntimas conexões com outras ruas, lugares, pessoas e paisagens que não fazia ideia. E bastaria um acaso, ou curiosidade repentina em "ir" para que tivesse acesso a uma dimensão absolutamente diversa, distinta, desconhecida que se chama "uma-outra-rua".

Eu conto como foi. Ocorreu assim.

Certa ocasião, a prefeitura da cidade empreendia uma série de obras tubulares na avenida principal do bairro no qual Pacheco residia. Um desvio de trânsito foi imposto pelo departamento de obras da prefeitura, de maneira que a obra em questão pudesse ser realizada. Um desvio! Sim! Desvio este que fez com que Pacheco, pela primeira vez, entrasse em um ambiente que não imaginava ser uma rua, pois, em todas as vezes, quando nas movimentações rápidas de sua rotina, dentro de seu carro ou na efervescência de sua moto, ao olhar de relance para a entrada daquela rua, jurava se tratar de um terreno baldio com mata fechada ao fundo. "Uma rua? não...". Mas era.

E como era uma rua! Respeitável rua! Apesar de seus metros iniciais carecerem de calçamento, nos metros seguintes, uma bonita estrada de pedras entregava a relativa antiguidade do lugar. Há tempos que Pacheco não estivera em um local com estrada de pedras... Os prédios eram distintos daqueles que Pacheco tinha o costume de ver: eram mais achatados e com adornos de quarenta anos atrás talvez, mesclando cores que hoje em dia não são comuns às edificações: havia rosas, azuis e violetas nas construções.

Esta rua, pelo fato do desvio, estava movimentada de veículos que por ali não tinham o hábito de circular. Pacheco viu um velho com um olhar depressivo, encostado na porta de uma mercearia que seguia a mesma linha arquitetônica das outras construções locais. "Talvez..." pensou Pacheco "... o velho esteja triste pelo fato do desvio fazer com que este lugar fosse descoberto, perdendo para sempre sua paz..."

E havia uma praça com crianças que brincavam em um parque disposto no centro desta, com brinquedos metálicos coloridos: novamente os azuis, os rosas, os violetas, com o adendo dos vermelhos e dos laranjas, misturavam-se aos predominantes verdes e marrons da natureza de árvores e plantas presentes naquela praça e aos olhares zelosos das mães que guiavam os pequenos no brincar. As mães dos pequenos eram pessoas que Pacheco, em momento algum, ousou imaginar existência. Elas expunham sorrisos que tinham distintas razões de ser daqueles sorrisos nervosos emitidos em seu cotidiano...

Era um dia de sol e com o céu bonito azul, igual ao desenho daquelas crianças que estavam na praça: o desvio da prefeitura abriu a Pacheco o desejo de entrar em outras ramificações, desejo este, que era constantemente ceifado pelos imperativos de sua rotina.

São José, 22 de Julho de 2020

Cleber Caetano Maranhão