A FLORZINHA ATROPELADA
Subo ao pico mais alto. Contemplo extasiada os vales e as cordilheiras que se estendem á minha frente até perder de vista. O meu olhar esbarra numa pequena flor tombada. Envieso os olhos para apurar se algo mais danoso aconteceu á pobrezinha.
Uma das pétalas tem algumas escoriações.
Seria uma manada de vacas em corrida desenfreada? Uma cáfila de camelos? Pachorentos como são, nem vêem onde põem os pés. A cavalaria a galope? Uma criança irrequieta? Ou um casal de idosos, amparando-se um ao outro porque já mal consegue andar?
Que seria que aconteceu com ela?
Seja o que for, prometo que vou descobrir!
Não vou cruzar os braços e dizer para os meus botões, quero lá saber! Não é nada comigo. É mais flor, menos flor!
Prometo que vou descobrir.
São muitas as presumíveis hipóteses. Nunca saberemos o que aconteceu, a menos que a flor fale. Muitas vezes, as vítimas preferem sofrer em silêncio ao invés de reclamar. Há muitas razões por trás dessa recusa, embora as mais frequentes sejam o medo de represálias, causadas pela coação e a vergonha da exposição.
O lugar é deserto e muito pouco movimentado. Uma coisa é certa, ela foi atropelada e deixada sem auxílio. Atropelamento e fuga. Ele há gente com tão mau coração...
Não se deve conjecturar. Conjecturas são susceptíveis de erro.
Desci ao vale, peguei delicadamente na pétala ferida e observei.
A coitada já está em sofrimento há pelo menos três dias.
Tentei reanimá-la mas sem sucesso. Contudo não desisti.
Procurei água. Eu tinha que encontrar água nalgum lugar.
Fiz uma prospecção pela área e na base dum pedregulho gigante, virado a oeste, encontrei uma poça com o almejado líquido. Foi uma sorte o lugar ser sombrio, a evaporação faz-se mais lentamente. Apanhei alguma água com a concha da mão e dirigi-me rapidamente para o lugar do acidente. Verti uma pouca rente ao caule da florzinha . Cuidadosamente molhei a pétala magoada, afim de a refrescar e libertar do pó. Gole a gole, fui dando de beber á flor. Ela estava muito fraca. Foi muito tempo em jejum forçado.
O meu coração sorriu de alegria, quando a vi abrir um olho. Á medida que a seiva milagrosa ia subindo, a flor ia abrindo os outros olhos sucessivamente. Ela tem tantos olhos, mas nem assim foi capaz de evitar que lhe fizessem mal. E não foi capaz de evitar que a vandalizassem, porque sofre dum mal muito grande, ingenuidade. Acredita que são todos bons e que ninguém faz mal a ninguém. Há muita gente assim, quer sejam ingénuos ou vândalos.
Esperei que ela ficasse totalmente restabelecida e perguntei-lhe o que tinha acontecido. Reparei que ela não queria falar. Foi agredida e insistia em ocultar o nome do seu agressor.
Seria por medo de represálias? Por vergonha? A verdade é que foi muito difíl, arrancar-lhe uma confissão. Tentei convencê-la a dizer a verdade com a promessa de proteção. Eu estava ali para a proteger, não tinha nada a temer. Fui fazendo perguntas á medida que não obtinha respostas.
-Foram os cavalos ? Foram os camelos ? Foi o casal de idosos? Foi a criança?
Quando falei na criança, notei-lhe um brilho revelador no olhar. Pronto, o imbróglio da questão estava na criança. Como não desisti, ela nao teve outra solução, senão contar-me o que realmente tinha acontecido.
Começou a relatar os factos.
-No dia do ataque eu estava realmente muito feliz. Sentia-me cheia de energia e até a minha côr estava mais viva e brilhante. Passou por aqui um garoto com ar traquina, pela mão da mãe. Obrigou a mãe a parar, porque queria arrancar-me e levar-me do meu chão. A mãe não deixou e puchou-o pelo braço. Como vingança deu-me um pontapé. Eu, que não lhe fiz mal nenhum e nem sequer abri a boca! Contudo a mãe não o castigou, estava cheia de pressa, ela só queria saír daqui. Parecia assustada. Na verdade lugares desertos e remotos, causam um certo desconforto e desconfiança, principalmente para os intrusos.
Eu, como foi aqui que nasci e cresci, para mim é o melhor lugar do mundo. É o meu lar, o meu chão, a minha âncora. Eu morreria se me arrancassem daqui á força. Aprendi a amar e respeitar o lugar que me criou. E depois, há as abelhinhas que gostam de vir sugar o meu pólen. Eu sei que elas fazem mel e eu sinto-me tão honrada por ser capaz de ajudar e contribuir para o bom funcionamento da engrenagem. Sabendo que também sou um dente da roda dentada, deixa-me extremamente feliz.
Sabes, nada acontece por acaso, está tudo divinamente ligado e sincronizado nesta imensidão que é a natureza e o tempo. Se esta criança mimada e birrenta não me tivesse pontapeado, tu não darias por mim, porque eu estava feliz no meu lugar e estando todos felizes seria o estado normal, então nada de estranho chamaria a tua atenção e despoletaria a tua sensibilidade e nós não estaríamos a ter esta conversa.
Enquanto ainda tive forças, antes de ter desmaiado, fiquei a pensar e a assistir ao filme que ia passando na pantalha da vida, protagonizado por esta e outras crianças, por esta mãe e outras mães da mesma índole. Sabes o que eu vi?
-Sim, acho que sei. Mas conta-me as tuas observâncias. Quanto mais vozes se levantarem, mais facilmente seremos ouvidos. Eu quero um mundo melhor, junto a minha voz á tua. Quantas mais vozes maior a sonoridade.
-Sim, é verdade. Se as mentalidades não evoluírem, se continuarmos a permitir que a cibernética nos escravize, ela sugar-nos-á até ao tutano, provavelmente seremos uma sociedade desumanizada. Individuos sem veias, porque o sangue deixou de fluir. Individuos sem neurónios, porque o cérebro deixou de pensar. Individuos sem coração, porque o coração deixou de amar. Seremos uma cambada sem sentimentos e emoções, vivendo dentro de nós num estado caótico. Sabes o que nós seremos? Sabes qual o nome certo para nós?
Um monte de lata!
©Maria Dulce Leitao Reis
28/02/2020