A última viagem do Opala 1986.

Os papéis do divórcio estavam em cima da mesa. A assinatura dela já estava no lugar.

Pedro chegou a perder a noção do tempo com os olhos presos na caligrafia dela. Ele quase podia sentir o desprezo dela impregnado na tinta... De alguma forma aquilo foi pior do que da primeira vez que ela disse que queria a separação.

Conformado, Pedro pegou a caneta e assinou bem acima de onde o seu nome estava escrito. Depois rubricou as outras páginas. Pegou o documento, guardou dentro de um envelope e deixou sobre a mesa, junto com suas chaves.

Foi até a garagem e abriu a porta do velho Opala 1986... Preto como carvão.

Pedro sentou-se no banco do motorista, repousou uma mão no volante e virou a chave na ignição. O motor roncou como se estivesse faminto.

Pedro acelerou, abriu o portão eletrônico e tomou a rua.

Tinha amanhecido há pouco mais de uma hora e as ruas estavam quase vazias. Pedro seguiu com o carro até a avenida beira mar. Lembranças se misturavam com seus pensamentos enquanto ele dirigia e chegou um momento que ele teve que parar o carro pra conseguir respirar.

Estacionou o carro e acendeu um cigarro. Deu dois tragos e no terceiro, engasgou-se com a fumaça. Pedro quis morrer naquele momento. E talvez tenha sido o primeiro momento da sua vida em que a morte soou como algo desejável. Talvez fosse mais fácil desaparecer e simplesmente parar de sentir.

Ele sequer lembrava quem tinha jogado a primeira pedra. Mas fora Enila que jogou a última, e o resultado era pior do que qualquer outro tipo de derrota que já tinha experimentado.

Pedro largou o cigarro no chão e voltou a dirigir... Guiou por cerca de uma hora e parou na frente de uma clínica de reabilitação.

Desceu do carro e atravessou uma porta de vidro. A recepcionista fez um sinal para que ele se aproximasse e Pedro se apresentou.

- Bom dia. Vim fazer uma visita a um amigo.

- Bom dia. Qual o seu nome e o nome do Paciente?

- Meu nome é Pedro Rodrigues. Vim visitar Eduardo Vasconcelos.

A recepcionista digitou algumas coisas no computador e respondeu com um sorriso.

- O horário de visitas começa em dez minutos. Os pacientes estão tomando café da manhã. O senhor pode espera-lo no saguão ou ir até o quarto dele.

- Vou até o quarto então.

- Ele está no número 204.

- Obrigado.

Pedro ignorou o elevador e tomou as escadas. Subiu dois lances e saiu num corredor que parecia com o de um hotel. Pedro se encostou à parede ao lado da porta e esperou.

Em questão de minutos, Eduardo saiu do elevador e veio em sua direção.

Pedro se desencostou da parede e falou.

- Você está com uma boa aparência.

- Não precisa mentir meu amigo. – Eduardo falou, com um meio sorriso. – Você sempre foi péssimo com isso.

Os dois se abraçaram e Eduardo abriu a porta do apartamento.

- Bem. Essa é minha gaiola. – Ele disse, apontando para o pequeno quarto onde vivia.

- Te tratam bem aqui?

- Melhor do que na rua.

- Então é um progresso.

- Sim. Tenho sorte de ter parentes com dinheiro o suficiente pra me tirar das ruas. Não que tenha sido por preocupação com o meu bem estar... Foi só uma questão de não ter ninguém “manchando o nome da família”...

Eduardo entrou e se sentou numa cadeira de madeira, e apontou uma poltrona pra que Pedro se sentasse.

- E então, amigo... A que eu devo essa visita? – Ele perguntou.

- Eu estava precisando conversar.

- E eu sou sua primeira opção?

- Sim.

- Me sinto lisonjeado então... – Eduardo falou batendo levemente um dos pés no chão.

Pedro respirou fundo sem saber o que dizer e por fim falou.

- Não sei nem por onde começar.

- Você tem um cigarro ai? – Eduardo perguntou.

- Vocês podem fumar aqui?

- Não exatamente. Mas cigarro é o menor dos meus problemas.

Pedro jogou a carteira de cigarros e o isqueiro para Eduardo, que acendeu um imediatamente.

- Ainda fumando essa merda mentolada? – Perguntou...

- É... Peguei o hábito com Enila.

- Como ela está a propósito? – Eduardo perguntou, depois de soltar a fumaça para cima.

- Estamos nos separando – Pedro falou quase se engasgando com as palavras.

- Putz. Não sabia...

- Está bem recente.

- Como você está se sentindo?

- Como se tivesse sido atropelado pela vida.

- Acho que sei como é.

- Pois é.

- Qual foi o motivo?

- Precisa haver um motivo? – Pedro perguntou sem conseguir disfarçar a irritação. – Ela simplesmente disse que queria que eu fosse embora.

- Algo aconteceu antes disso? Tédio, traições, mentiras. O usual?

- Ela falou que estava apaixonada... Por outra pessoa.

- Isso é foda. Quem é o cara?

- Estou pouco me fodendo pra quem é o cara.

- Não parece.

- Eu estou puto por que ninguém se apaixona do nada. Se ela se apaixonou por alguém, provavelmente estava fodendo com ele pelas minhas costas. A princípio eu não me dei ao trabalho de me questionar nada sobre isso... não sou do tipo masoquista. Mas ela jogou na minha cara que estava apaixonada há um bom tempo...

Eduardo não disse nada e permaneceu focado no cigarro.

- Só quero distância dela. Se ela tiver no norte eu quero estar no sul. Mas ao mesmo tempo eu penso que seria uma boa não estar em lugar nenhum. – Pedro continuou.

- Pronto, meu amigo. Você chegou ao ponto.

- Que ponto?

- Se sua vida é uma casa prestes a desabar. Você está no ponto em que pode escolher deixar tudo pra trás, ou se desaba junto com ela.

Pedro ficou olhando fixamente pra Eduardo enquanto ele finalizava o cigarro.

- A vida é um espetáculo sem diretor, meu amigo. Todos nós somos atores, mas ninguém nos deu roteiro algum. Tem gente que tenta escrever as próprias histórias, tem gente que se conforma em seguir o fluxo. E tem caras como eu, que preferem ligar o foda-se pra a plateia. Resta saber quem você é. – Eduardo continuou.

- Sinceramente eu não sei o que fazer.

- Você é muito mais do que um casamento, Pedro. Puta merda.

- Meu amigo. Eu acabei de descobrir que os últimos anos da minha vida foram uma mentira. Como você acha que eu me sentiria?

- Pedro... eu também me separei, mas no meu caso foi o contrário... você sabe, não é? Fui eu que causei o fim do meu relacionamento com Letícia... “Sometimes a man gets carried away, When he feels like he should be having his fun. Much too blind to see the damage he's done. Sometimes a man must awake to find that, really, He has no one “ como diria Jeff Buckley...

Pois eu sempre exagerava na minha diversão. A princípio ela perdoava... até que deixou de perdoar. E a ironia é que ela está bem melhor hoje. E eu... bem... estou numa clínica pra viciados. Sozinho.

- Você não está sozinho, cara. – Pedro falou com um ar pesaroso.

- Você é a primeira pessoa que vem me ver nos últimos seis meses. Inclusive, a última pessoa que veio aqui foi a própria Letícia.

- Sério?

- Me trouxe chocolate e tudo. E veio me apresentar a filha.

- Não sabia que ela tinha sido mãe.

- Pois é. Júlia, a menina tem quatro anos agora. E ela me chama de Tio Du. Engraçado não é? Depois de tanto mal que eu fiz a ela... Letícia parece ser umas das poucas pessoas ainda que se importa.

- Não é o caso de Enila. Acho pra ela tanto faz se eu estou vivo ou morto.

- Você não sabe. Mas isso realmente não faz diferença.

- É... não faz. Mas eu não consigo me perdoar por ter sido tão idiota.

- Se você ainda não tem condições de perdoá-la pelo que ela te fez, pelo menos reserve algum perdão pra você mesmo.

- Vou tentar.

Eduardo deu um sorriso amarelo, se levantou e tirou uma garrafa de água do frigobar.

- E o que está pensando e fazer agora?

- Vou fazer uma viagem.

- Pra onde? Por quanto tempo?

- Bem... Não sei ao certo. Pedi demissão e peguei um dinheiro que vinha juntando... Dei um jeito no Opala que foi do meu pai... Não sei quanto tempo vai durar. Provavelmente vai ser a última viagem dele... Não sei pra onde vou ainda... Acho que pro sul. Vamos ver até onde ele me leva.

- Isso... Não precisa ser muito específico mesmo.

- Bem... Preciso ir agora, cara.

- Posso ficar com o cigarro? - Eduardo perguntou.

- Pode. Só cuidado pra não encontrarem.

- Fica tranquilo.

- Vou ligar qualquer dia desses.

- Ligue sim. Me dê notícias.

Pedro se levantou da poltrona e deu um abraço em Eduardo e se dirigiu a porta.

Saiu e não olhou para trás.

O Opala estava esquentando no estacionamento, sob o sol da manhã.

Pedro conferiu se suas coisas estavam no banco de trás antes de ligar o carro.

Não havia muito... Tinha deixado a maior parte das coisas para trás.

Talvez assim fosse mais fácil de seguir em frente.

Pedro tirou a aliança do dedo deixou na calçada do estacionamento.

Ligou o carro e o motor roncou pedindo para partir. Pedro acelerou e logo viu a cidade desaparecendo pelo retrovisor.

Enfim, podia respirar.

Baixou o vidro e inspirou fundo o ar pesado pelo pó da estrada.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 20/07/2020
Código do texto: T7011169
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