O caça-palavras
A noite está tão quente. O suor escorre por sua testa, mas isso não é capaz de aborrecê-lo. Está à meia luz, num rito que exige dos seus olhos um grau mais elevado de esforço. Ele traga o cigarro, solta uma leve baforada e depois tosse. Uma tosse que marca um casamento duradouro com a nicotina.
Talvez ele consiga descobrir a misteriosa palavra de sete letras, que está no sentido vertical da página formando uma grande espinha dorsal, ou quem sabe inicie tentando descobrir as menores sentenças. Ele tem somente uma dica que não se mostra suficientemente boa. Balbucia qualquer coisa, tenta soletra as palavras, algumas em pensamentos, outras através de movimentos labiais silenciosos:
- Droga! Esta palavra é a principal do jogo e sem ela eu não consigo fazer nada!
O caçador-palavras tenta examinar o dicionário de sua mente, o seu vernáculo interior. Ele pensa que o cérebro é capaz de lembrar e esquecer tantas coisas, importantes ou não. Ele guarda dentro de si um inexorável universo de milhões de palavras, frases extensas formadas de sentenças complexas, uma verborragia profunda , mas que não encontra qualquer possibilidade de ser externada. Logo, no decorrer dos anos, acostumou-se a dar apenas “bons dias”, “boas tardes” e “boas noites”.
Então, na impossibilidade da expressão da linguagem, no decorrer do tempo se empenhou em acumular palavras. Desde pequeno, ainda na fase de alfabetização, já acumulava muitas palavras. Mesmo sem saber o sentido as devorava. As lia em livros, gibis, revistas, mas gostava mesmo era de lê-las nas placas que nomeavam as ruas, pois assim, a cidade ia adentrando cada vez mais nele, tornando-se um só com a metrópole.
O caçador tenta outra estratégia.
Busca na horizontalidade algum sentido. “Uma palavra com seis letras no sentido deitado”. Talvez seja a palavra “sonhar”. Afinal, existe utopia maior do que sonhar com um mundo mais justo, mais humano, menos preconceituoso e violento? Existe alguma palavra que se ajuste nestes quadradinhos? Ele tenta escrever, porém a ponta da caneta paira sobre o primeiro espaço. Não quer arriscar ter um “sonho” perdido, então deixa o espaço em branco, coloca a caneta ao lado do livro. Traga profundamente o seu cigarro.
Depois deste instante de elucubração, volta o seu foco para as opções que possui que lhe permitirão ganhar o jogo. Sorri brevemente com os olhos. Ele sabe que está desafiando o enigma. Prende o cigarro entre os lábios, depois, volta os olhos para as paginas recicladas. Agora, finalmente sorri com os lábios.
- Eureca!!!
Começa a escrever diversas palavras. A caneta é manuseada de forma rápida, intuitiva e precisa. Existe uma beleza gentil nos seus movimentos. De modo que os traços da sua grafia podem ser comparados ao da escrita árabe. E com esta descomedida descarga de sentidos surge blocos de letras que formam uma arquitetura singular. A páginas amarelada agora está subjugada. Ele olha para o seu trabalho, ainda está com o cigarro preso aos lábios. Vê uma folha completamente rabiscada, preenchidas todas as colunas e linhas. Tinha conquistado o céu, tinha conquistado os homens! Suspira docemente, finalmente havia vencido o Enigma da Linguagem.