224 - Ausências
A cidade expandiu-se e englobou aquela área. De todas as janelas se viam as antigas alamedas com cruzes fora de prumo, estátuas melancólicas, anjos de pedra. Muitos espaços com relva onde a passarada colhia insectos ou minhocas na terra fofa. O pai, que se empregara lá como guarda e cuidador, acabou sem trabalho quando, já sem os muros, o cemitério se tornou só mais um espaço de passagem, quase um parque da área urbana. Nos dias de calor e sol, viam-se as pessoas despir-se e esticarem-se relaxadas como numa praia. Desde menina a morar ali, já nada tinha mistério. Brincou entre os túmulos onde, disse alguém com sabedoria, não estava ninguém. Depois que o espírito sai do corpo, tudo muda para uma imobilidade sem remédio. Quem já não vê, não protesta, não ouve nem fala. Por isso, com ou sem lágrimas, acabavam por ali abandonados ao tempo que amainou dores nos peitos que os amaram. Fechou a janela, escureceu a sala, deu de comer ao gato e sentou-se segurando a alça da saca e o molho das chaves. Perdeu e ganhou família. Perfilavam-se os retratos em molduras fora e dentro da estante de vidro. Olhou o relógio e corrigiu-o mentalmente. Era sempre meia hora antes do que marcava. Quando escutou o som da campainha, colocou o lenço de seda ao pescoço e disse para o gato: - Se eu demorar, dorme.