O VERSO E ANVERSO DE UMA FACE
 
Introito
 
As dependências daquele enorme palacete estavam em festa. O choro de um recém-nascido chegava aos ávidos ouvidos do chefe do clã. Era o choro tão sonhado e esperado pelo Barão, oriundo que era do baby varão. A alegria do Barão – mesclando-se ao choro do herdeiro baby – formava um harmônico duo de felicidade incontida.

Exultante, o Barão de Chamberlliann esfregava as suas nervosas mãos. Demostrava na face um riso, enquanto na bocarra, mostrava o siso. Ele dava vazão aos seus incontidos contentamentos. Enfim, poderia realizar o tão esperado sonho de ascensão aos maiores postos no reino.

Sabedor do poder da Igreja Católica junto à Corte Palaciana queria, por isso mesmo, ter um filho para fazê-lo Padre com um livre trânsito na corte e poder junto ao Rei. Sabia também que a Igreja era o alicerce, a pedra fundamental que sustentava a força governamental do Rei por exercer – sobre a plebe, claro – o poder de sofrear os ímpetos e anseios populares. Portanto, o filho varão era o cordão umbilical, elo mor e primordial do plano do Barão de Chamberlliann para ascender-se às graças do Rei! 

A corte era – como hoje podemos ver – um Tabuleiro de Xadrez onde se vislumbra: Torres, Cavalaria, Bispos, Rei, Rainha, sendo a plebe representada pelos Peões. Era uma espécie de governo no qual poder-se-ia afirmar a máxima de que tudo era pecado! Todavia, matava-se em nome de um pequenino “deus”, usando-o nas propaladas Guerras Santas, de “Santas” e imensuráveis sandices.

Poder-se-ia dizer que a Igreja era quem detinha um poder paralelo muito forte. Mais forte até que o Poder Real exercido pelo Rei. Mesmo por que, sem a coercitiva força da Igreja Católica – provavelmente, diga-se – o Rei e todo o reinado ruiriam.

Sabedor de tudo isso, o Barão sonhava e almejava – por ter um filho com poderes eclesiásticos inseridos na corte – alçar voos magistrais. Voos altos, bem mais altos, dentro da hierarquia palaciana. Então, explica-se: O choro do nascido baby varão era a alegria do Barão. Tudo o que fora planejado estava dando o esperado resultado.
 
Parte I
 
O menino cresce. Aos oito anos de idade ingressa, por ordem do Barão, no Mosteiro de Saint Gervasier. Vocação sacerdotal? Para quê? Por ser coisa de somenos importância, claro – não havia! E o menino, do Mosteiro somente sairia ao término dos estudos quando, então, seria ordenado Padre da Igreja Católica Apostólica Romana. Esta era a parte fundamental – o elo mor para os planos do Barão!

Passa o tempo. O menino cresceu – já se tornara um homem! Faltavam poucos meses para que fosse ordenado Padre da Igreja Católica. Faltavam poucos meses para que o sonho do Barão de Chamberlliann se tornasse uma realidade insofismável.

O noviço, todavia, se sentia um peixe fora d’água! Aquele não era o futuro que almejava para si. Não lhe fora perguntado sequer: – “O que gostaria de se tornar, ou mesmo, vir a ser?”  
Simplesmente, fora ele encaixotado em um Mosteiro para ser aquilo que o seu pai gostaria que ele fosse. Mesmo porque – e no afã de realizar os seus sonhos de poder – o Barão, claro, não abdicaria e nem abriria mão dos seus objetivos! E por isso, o noviço era um triste ser. Nada lhe poderia fazer feliz – e feliz não era!
 
Parte II
 
O toque na porta do atelier chamou a atenção do famoso pintor italiano Sandro Botticelli Nascimento de Vênus. Ele atende. Era um emissário do Papa Alexandre VI que diz:
-Sua Santidade – o Papa Alexandre VI – convida-o para uma audiência e, para tanto, solicita que o senhor compareça à sua residência Papal.

Assentindo ao convite, marcaram data e hora para o encontro. No dia, lá estava o pintor na Residência Papal sendo recebido pelo próprio Papa que lhe dissera:
-Quero que o senhor pinte uma tela na qual seja mostrada a face de Jesus Cristo. Todavia, quero algo diferente. Busque um modelo a ser usado pelo senhor que deverá ter (isso é fundamental) um rosto que demonstre amor, carinho, compreensão, fraternidade e que – acima de tudo – demonstre ter um poder enorme de conceder o perdão. Encontre um rosto assim, que possa transmitir (Mesmo que sejam sob a ótica de um leigo ou de um exímio curador) todos estes importantes detalhes, e o transfira para a tela. Quero a face de um Cristo Jesus nunca dantes retratada, com o seu pio olhar demonstrando tudo que a humanidade, ansiosamente está em busca!

 O pintor sai pelas ruas. Buscava um rosto na multidão. Buscava aquele rosto que pudesse transmitir aos néscios – leigos ou sábios – tudo aquilo que a humanidade buscava e ainda busca, até nos dias de hoje: A face de um Cristo Salvador!

As buscas prosseguem. O cansaço era o combustível que alimentava o sentido de desistência que aumentava. Como é difícil Senhor Deus, encontrar – dentre os homens – alguém que possa se identificar com o Vosso Filho. Mesmo sabedor que somos “a Sua imagem e semelhança”, não consigo encontrar uma face dentre os homens que possa se identificar com o rosto do Vosso amado Filho Jesus – dissera, para si mesmo o que em alta voz pensara!

Alquebrado, almeja desistir. Vou à procura da Sua Santidade, e o direi da impossibilidade de concluir o trabalho. Não há no mundo atual, Senhor, um rosto apto a transmitir tudo o que acreditamos existir na face de Jesus Cristo. Os homens não são capazes de transmitirem – lamento dizer – tudo aquilo que somente o Filho de Deus transmite. Seria essa a sua mensagem de desistência que passaria ao Papa!

Após o introspectivo exame de consciência, decidido, ele levanta os olhos e vê que estava diante de um Mosteiro. De lá vê sair um noviço. Olha-o e seus olhares se cruzam. Nos olhos e face do noviço ele enxerga os olhos e a face de Jesus Cristo. Vê naquela face tudo aquilo a que tanto buscou. Aproxima-se do noviço, expõe o que almejava. O noviço, em princípio, reluta:
-Não posso aceitar isso, senhor – diz! Sou um mero pecador e, a minha face é como a de qualquer um mortal. Não sou capaz de emprestar o meu rosto para que possa vir a ser a face que representará o sublime rosto de Jesus Cristo. Sinto muito, senhor – concluíra!

Todavia, e depois de ser explicado que se tratava de um pedido do Papa, o noviço aceitou posar para ser retratada a face de Jesus tendo a sua como modelo.
Após o término do trabalho, Botticelli leva a sua obra para a devida crítica, ou seja, a aprovação da Sua Santidade. O Papa se exulta e, sem poupar os elogios, o parabeniza!
-“Este é o rosto que buscava porque ele diz tudo que o Mestre Jesus quis transmitir para o homem” – dissera o exultante Papa Alexandre VI!
 
Parte III
Passaram-se os anos – três... quatro se tantos! Novamente alguém bate à porta do atelier do pintor Botticelli – ele atende!
-“O Papa deseja falar com o senhor” – dissera o enviado!
Nas tratativas, dia e hora foram agendados e – na data e hora marcadas, lá compareceu Botticelli para a audiência.

-“A sua obra foi um sucesso total. Quero, agora, que você busque um rosto que seja capaz de representar o Judas – aquele mesmo que traiu Jesus Cristo – busque-o na multidão” – dissera-lhe o Papa!

Botticelli sai às ruas, praças e logradouros. Buscava um rosto capaz de se identificar com aquilo que viesse a dizer para todos – mesmo que sejam sob a ótica de um leigo ou curador – a face de Judas. Será fácil – imaginou! A face que seja capaz de demonstrar ódio, aversão, avareza e que seja incapaz de conceder o perdão, é uma face comum. Infelizmente, este é o modelo que pulula nas ruas, praças e logradouros públicos. Não deveria ser assim – mas, infelizmente é!

Os argutos olhos buscam a pior dentre as piores faces. Encontra-a e dela se aproxima. Expõe o motivo do assédio e do convite para posar.
-Estou buscando um rosto que possa transmitir todo o sentimento que havia no coração de Judas quando perpetrou a traição de Jesus Cristo. Em seguida perguntou:
-Você quer posar para mim, para que eu possa retratar a sua face como sendo a de Judas Iscariotes?

O passante abordado esboça um ligeiro riso e diz:
-Senhor Botticelli, noto que o senhor não se lembra, mais de mim. Há uns anos passados, fui procurado pelo senhor que buscava um rosto na multidão que fosse capaz de transmitir tudo que de bom havia no coração de Jesus Cristo. Hoje, todavia, sou procurado pelo senhor para servir de modelo do anverso da face do Filho do Criador, onde se estampa tudo de ruim que há no coração do ser humano. À época, senhor Botticelli, eu era um noviço. Vivia em um mundo que não era o meu. Um mundo para o qual fui levado pela ambição do meu pai, o Barão de Chamberlliann. Ele sonhava com o poder e ascensão na Corte Palaciana e, para tanto, precisava que eu, seu filho, ascendesse ao Clero para dar-lhe a oportunidade da ascensão junto ao Rei. Não havia em mim nenhuma vocação sacerdotal. Havia, sim, o mórbido interesse do meu pai.

Dentro do Mosteiro – prossegue o modelo – senti que estava traindo a mim e a todos que, eventualmente, pudessem necessitar do meu trabalho pastoral. Senti que seria um mau Pastor de desgarradas ovelhas. Um traidor dos princípios que a religião deveria transmitir. Assim pensando, abandonei o celibato. O meu pai – se sentindo traído – deserdou-me por julgar ser eu o motivo que o impediu de realizar os seus sonhos. Senti-me bem melhor. Seria pior se viesse a ser um traidor do meu Deus e por Ele ser julgado!

Perdido, aqui estou. Sou um rosto comum como são todos os rostos que possam ser retratados como sendo o de Judas Iscariotes. O meu rosto de antes – aquele que fora visto pelo senhor – era um rosto forçado, repito, pela ganância do meu pai. A minha verdadeira face é esta que, agora, está vendo: o retrato vivo do Judas traidor, por ser esta a face vista pelo meu pai. Como pode ver senhor Botticelli, aquele rosto não mais existe. Dentro do Mosteiro eu representava para o senhor aquilo que não era – o Cristo Jesus! Hoje, aqui fora, sou – sem representar – a verdadeira face do ser humano: o Judas traidor do nosso Jesus Cristo.

O pintor o abraça – ambos choram! Botticelli lhe diz:
-Filho, você não é o Judas que imaginava eu. A face da medalha que vi em você – quando nela pensei para retratar a de Jesus Cristo – é a mesma de então. Não há no seu bondoso rosto o verso ou anverso – comum em todas as moedas! Em você há somente a verdadeira face de Cristo Jesus. A face que não sofreu alterações como as encontradas nas faces das trinta moedas do Judas, ao traí-Lo. Você não é o Judas que imagina ser. Você é o rosto do Cristo Jesus porque dentro de você existem todas as boas coisas que o amado Filho de Deus queria que existissem em todos os rostos e corações dos seres humanos: amor, carinho, compreensão, fraternidade e que – acima de tudo – demonstrasse ter um enorme poder para conceder o perdão!
-Jesus Cristo está em você! Você não é – e nunca será – o Judas que pensa ser. Você é o melhor de todos os seres humanos. Não posso retratar a sua face para nela ver o Judas. Sua face é a mais digna para ser o modelo no qual possamos retratar o rosto que o Pai Celestial quis que tivéssemos. É a melhor de todas quando pensarmos em retratar o Seu amado Filho Jesus Cristo. Somente assim, meu jovem, poderemos dizer que:
- “Somos a imagem e semelhança Dele – o Nosso Pai Celestial!”
 
 
 
O Barão de Chamberlliann, bem como Mosteiro de Saint Gervasier são meros frutos da imaginação do autor.
O Papa Alexandre VI (Esse, sim, era real!) teve um papado que perdurou no período de 1492 até o ano de 1503.
O pintor Sandro Botticelli: (Também existiu!)
Sandro Botticelli foi um dos mais importantes artistas plásticos do Renascimento Cultural.
 
Altamiro Fernandes da Cruz
Enviado por Altamiro Fernandes da Cruz em 09/07/2020
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