No nevoeiro, gretas da história.
No nevoeiro, gretas da história.
Amélia Luz
A avó cansada repara a poeira do tempo cochilando na cadeira de balanço do alpendre do velho casarão da Fazenda Santana. O jardim florido exala o perfume das rosas em tempos de primavera brasileira. A mesa é farta. Além da açorda quente, do pão e do vinho do Porto iguarias de sabores lusitanos e sonhos guardados de uma pátria distante que deixou na mocidade escondida no nevoeiro e nas ondas de um oceano, cheio de medos e mistérios.
As contas do terço passam vagarosas em seus dedos envelhecidos e ao cair da tarde, ao quase anoitecer, na hora sagrada dos anjos busca a graça divina. Hora devocional de rezar à Nossa Senhora de Fátima pedindo bênçãos.
Um xale de lã cobre-lhe os ombros arqueados. Na vitrola um fado chorado ao bandolim relembrando a Mouraria e toda a sua gente. Fita um tempo distante olhando uma paisagem do Tejo dependurada na parede caiada da sala de visitas entre os muitos retratos de velhos antepassados, homens de longas barbas e mulheres de cabelos frisados embelezadas pelas roupas elegantes em rendas, flores e filós.
Há de ser lúcida e quase centenária para que no seu silêncio interior possa ainda ouvir o longínquo chamar da terra palpitando nas suas raízes, raça lusa que traz no sangue abençoado e corajoso. Reconta as bravatas da terra, batalhas e reinados, Lisboa, a Corte, Dom Sebastião e Alcácer Quibir, Dom Henrique e as filhas Tareja e Urraca, os heróis portugueses contra Leão e Castela desfiando lendas. Recita ainda alguns versos Camonianos com vigor e civismo. Entoa o hino pátrio com voz senil, mansa e suave.
Anciã recolhe os últimos ecos que teimam em recontar a sua história de lutas, trabalho e de conquistas no Novo Mundo, uma epopeia. Amélia Vieira Raposo filha do Capitão Joaquim Antônio Vieira Cardoso, do pequeno e distante Caiapó, Distrito de Pirapetinga/Mg, nas margens do Rio Paraíba do Sul é uma brava mulher dotada de caráter firme, doce como os seus doces, cheia de longas histórias para os seus muitos netos que a rodeiam encantados. Sem nunca se esquecer que a ternura faz parte da alma e acalenta corações aflitos acaricia a todos com o dom da tranquilidade.
E no dobre do sino das Ladainhas da Capela do Cruzeiro revive a infância perdida que continua viva nas lágrimas quentes de saudades que correm entre as rugas profundas do seu rosto santo.