Além da cerca de arame farpado.
Conto: Além da cerca de arame farpado.
Amélia Luz
Estava diante de uma vitrine numa rua qualquer em New York. Havia assistido pela televisão na noite anterior a abertura dos Portões de Brandemburg. Na vitrine, exposto, um lindo vestido de noiva. Parei no tempo, voltei a Varsóvia e me vi no apartamento, sentada com meus pais para o café da tarde. Discutíamos os últimos detalhes do meu casamento. Quatro xícaras de leite bem quente, o cheiro do pão torrado, a geleia de maçãs, os biscoitos de aveia, o aconchego. Tudo preparado pela minha mãe, pela última vez. Eu e papai havíamos chegado do consultório dentário, após um dia exaustivo de muitos clientes. Meu irmão também chegava do seu trabalho no centro da cidade.
Violentamente, bateram na porta. Meu pai amedrontado pediu silêncio e a porta, então arrombada, permitiu a entrada dos soldados nazistas na nossa casa. Ficamos os quatro abraçados, tomados pelo pânico. Nick latiu tentando expulsa-los, mas um tiro certeiro vazou-lhe o cérebro e ele caiu a meus pés.
Diante da vitrine, lembrei meu vestido de noiva, sobre a cama, cuidadosamente preparado para o meu casamento que seria secreto, somente para os mais próximos, marcado para o sábado. Fiquei ali parada por um bom tempo e desfiei todo o nosso sofrimento. Éramos polacos e estávamos sob a mira de Hitler. Mais cedo ou mais tarde seríamos exterminados como foram parentes e amigos. Chegara nossa hora. A elite intelectual e social foram os primeiros alvos.
Fomos levados para a inanição e para a morte em Auschwitz e Birkenau onde ficavam os crematórios. Ficamos quase nus no galpão até a chegada do trem. Fomos separados cruelmente e meu pai, desorientado pela separação, reagiu. Um tiro, ali, diante e nós o levou para sempre. O corpo seguiu arrastado para o poço profundo de incineração. Minha mãe e meu irmão seguiram viagem e eu fiquei só, perplexa, diante de tudo. Tive a sorte de manter a saúde e me aproveitaram no trabalho. Apenas um pijama de listras e a sopa rala de batata. Não me curvei, a esperança me acompanhava!
O tempo passou lento. Ajudava como enfermeira nas poucas horas vagas cuidando dos judeus irmãos, tão desgraçados quanto eu.
Nunca mais vi meus familiares. Guardo a expressão de terror de meu pai e o último olhar de minha mãe na janela do trem, naquela tarde cinzenta e chuvosa. Só eu fiquei em Auschwitz, papai partira na morte trágica e minha mãe e meu irmão para o desconhecido sem volta.
Fazia frio naquela tarde de New York. Um frio parecido com o do sul da Polônia, onde vivi o meu martírio. Não sei se por sorte ou por azar, tinha boa saúde e venci o holocausto. A última resma autoritária da guerra havia caído. Os Portões de Brandemburg estavam abertos e os alemães poderiam transitar nele livremente.
Estava na América tantos anos depois. Celebrava a alegria de estar viva, de ter vencido Auschwitz, mas chorava a tristeza de ter perdido tudo: a família, a casa, a profissão, Nick e todos os meus pertences. Anninka valente Anninka, disse para mim mesma, havia sobrevivido aos horrores do holocausto!
O führer havia tombado, a guerra havia acabado e as feridas ainda estavam abertas e sangravam muito. Vivi meus últimos dias na Polônia. O vestido de noiva, dependurado na vitrine levava-me à mocidade perdida e aos meus anos de tranqüilidade junto de minha família. Hoje, o importante é lutar por um mundo melhor, longe das atrocidades do período do 3º Reich, o maior pesadelo da história do sáculo vinte.
Escrevo muito. Minha raça judia leva-me a escrever sobre a guerra, a Polônia e o nazismo, numa forma de desabafo onde posso encontrar a paz depois de muita tempestade.
Passava distraída por uma avenida de intenso movimento vendo as vitrines iluminadas. Súbito parei. Em minha frente um templo aberto cheio de fiéis entoando cânticos de suave melodia. Senti-me arrastada para aquele local. O reverendo cantava e orava. Era um culto de adoração a Deus. Pude então perceber que ali havia muita paz. Cheia de alegria encontrei após tantos anos o momento oportuno para uma oração de gratidão. Gratidão pela vida e por ter superado a tantas atrocidades raciais e estar ali, chorando e dando vazão à espiritualidade que me tomou por inteiro. Senti-me curada das lembranças amargas, das dores sofridas e, sobretudo da revolta! Dentro de mim não havia mais a velha mulher judia que odiava seus algozes e ruminava rancores. Uma nova mulher nascia para a vida plena naquele lugar santo. Entoei meu cântico alvissareiro, a bênção que me invadiu sem nenhuma explicação, nem preço. Era manifestada a graça que descia do Senhor.