No Coração da Montanha

Me lembro de tê-la conhecido durante uma de minhas caminhadas pelo bosque. Naquele dia ela usava um chapéu branco, um vestido rosa todo florido e sandálias brancas, a primeira vez que nos vimos ela sorriu para mim. Naquele dia nós caminhamos juntos até esta ponte, ela se despediu com um beijo em minha face e a atravessou, eu voltei para o bosque, tomei o caminho da minha casa que fica no alto. Agora a ponte está em pedaços e ela, desparecida.

Foi na noite passada, acho que exatamente a meia-noite quando, acredito eu, toda a cidade começou a ouvir o barulho dos grandes blocos de concreto se precipitando rumo as águas geladas do rio, felizmente ninguém passava na hora, não houve feridos. Todavia estão todos assustados, principalmente os mais velhos. Quando eu era criança, meus avós costumavam me contar histórias estranhas sobre este rio, histórias que sempre foram contadas desde antes da colonização, nos anais da história local há relatos de encontros de colonizadores com indígenas que diziam temer o rio, digo, não exatamente o rio, mas “coisas” que moravam nas montanhas onde fica a nascente.

Eles, os índios, até hoje contam histórias um tanto quanto esdruxulas a respeito de coisas estranhas que acontecem nas montanhas em noites de lua cheia, também já ouvi um monte de comentários sobre luzes em algum lugar perto de cume. Contos bizarros e absurdos típicos de cidadezinhas do interior, o que eu acho estranho é que ultimamente as pessoas daqui tem se inclinado cada vez mais para acreditar em tais narrativas insanas, haja vista a quantidade de relatos do avistamento de alguma coisa alada rondando a ponte horas antes do desabamento. Um surto de alucinação coletiva talvez? Bem, eu sou um repórter, não tenho tempo para acreditar em lendas, mas é meu trabalho investigar o que quer que esteja acontecendo, não bastasse o caos ocasionado pela queda da ponte, a única coisa que ainda nos ligava ao mundo lá fora, minha doce Angeline despareceu no dia da queda, e eu tenho que encontrá-la.

White Brook. Fundada, salvo o engano em 1867, sabe existe um lugar na Pensilvânia que também se chama assim. Mas essa White Brook, minha White Brook, é quase uma caixa de fósforos comparada a outras cidades do entorno, a cidade é cercada por bosques de abetos e montanhas que ficam a maior parte do ano cobertas por neve, ás vezes nós costumamos ser castigados por tempestades no verão, e avalanches no inverno.

A maior parte do volume hídrico do rio provem do degelo do alto montanhas, o gelo derrete e escorre pela rocha e lá embaixo se junta a água da nascente, quando isso acontece lá perto de entrada da cidade, o pacato córrego se transforma em uma fortíssima correnteza e assim segue por quilômetros, mesmo assim ainda dá para fazer uma tranquila viagem de canoa e ás vezes até dá para pegar uma bela de uma truta... era o que eu costumava fazer com Angeline nos primeiros dias do verão, acampávamos no bosque e ás vezes, passávamos a noite toda em claro, admirando as estrelas.

Enquanto escrevo isso, percebo que talvez eu seja um dos poucos que ainda gosta desse lugar, é muito bonito e tranquilo, uma típica cidadezinha do interior, a maior parte da nossa renda vinha da mineração e do turismo, mas a quase dez anos as minas fecharam e só sobrou o turismo. Uma dúzia de casaizinhos de adolescentes e malucos fugindo do caos urbano por mês não é muito para pagar as contas, é difícil dizer alguma coisa, a maior e talvez única fonte de renda que a cidade tem é o turismo, mas somos completamente desestruturados não só para isso como para um monte de coisas. Se não bastasse tudo isso, a Sr. Gordon Gates, nosso velho monstro de metal e concreto, de uma hora para outra, ruiu na noite passada.

Tenho lá minhas teorias, talvez alguém esteja fomentando a divulgação dos boatos, revisitando histórias do folclore local, espalhando esses relatos insanos sobre essa coisa alada que “derrubou” a ponte, porque quem sabe, essas histórias talvez possam atrair alguns malucos, curiosos e criptozoologistas, ou qualquer um cujo fetiche seja caçar animais lendários. Eles veem, se hospedam em nossa cidade, comem nossa comida, bebem nossa bebida, e quando finalmente se derem conta de que não há nada aqui, já terão deixado todo seu dinheiro em nossas mãos. Particularmente eu não concordo com essa ideia, mas no momento estamos precisando apelar.

Fazem uns cinco ou seis anos que trabalho no jornal local, ontem à noite enquanto tentava terminar uma matéria liguei o rádio para tentar distrair, o prefeito Winston Banks, um velho de bigode castanho que está sempre sujo com algum tipo de gordura, estava fazendo um pronunciamento, foi tragicômico. Ele passou quase uma hora e meia disparando uma torrente de promessas vazias, além do uso quase abusado de termos como “união”, “democracia”, “o poder emana do povo” e o clássico “eu acredito em vocês! ” Meu pai o conheceu na juventude, ele sempre me dizia que ele não passava de um estupido... e ontem eu percebi o quanto meu pai estava certo. Gordon Gates levou cinco anos para ser construída, custou o suor e o sangue de muitas pessoas, uma delas meu bisavô, mas parece que alguém conseguiu convencer o bigodudo de que poderíamos reergue-la em uma semana ou menos... ah cômico, para não dizer patético...

Mantendo a tradição de família, Winston e eu também nos odiamos. Acho que foi desde o dia em que consegui entregar uma matéria provando que Gordon Gates estava cheia de problemas que iam desde ferrugem em toda a estrutura de metal, até profundas fissuras no concreto. É isso mesmo, rachaduras não, fissuras. É, talvez Gordon Gates não tenha caído por causa da influência de uma criatura do folclore local, mas quem sabe graças a ação do tempo somada a desastrosa gestão de um certo bigodudo charlatão. Em um artigo que escrevi ontem eu acabei dizendo que se deveria haver união entre nós, então que fosse para pedir seu impeachment, dele e do nosso igualmente “brilhante” governador.

Soube que meu artigo fez muito barulho, tanto que o editor precisou viajar para algum lugar na Escandinávia, onde tinha parentes, não lembro direito. Na verdade, naquela semana enquanto o prefeito e seus aliados esperneavam para todos os lados, eu estava em algum lugar das montanhas. Depois de um tempo eu não consegui me concentrar em mais nada, só consegui pensar em Angeline e na falta que ela me fazia. Peguei uma mochila e juntei tudo que precisava, deixei minha casa no bosque e fui procurar por ela.

Estávamos no começo de maio, a neve terminava de derreter, ainda assim estava frio, embora não tanto quanto antes. Durante alguns momentos em que parava para descansar, eu aproveitava para meditar no que diziam os índios e os mais velhos sobre a cidade, o rio e as montanhas e por alguns momentos eu sentia que podia entende-los. Mais no alto ainda havia muita neve e aqui, no meio desse deserto branco, o tempo parece não seguir uma ordem lógica, juro que tinha dias que parecia que a noite nunca ia chegar, mas havia outros em que parecia que eu mal dava dez passos e tudo, repentinamente, ficava escuro.

Foi mais ou menos no quarto ou quinto dia. Ainda reluto, me perguntando o que tinha sido aquilo, e ás vezes eu ainda me pego me perguntado se eu estava delirando ou sonhando.

Eu tremia muito, só com um esforço quase sobre humano eu consegui acender uma fogueira, mas ela parecia não ter tido nenhuma serventia pois eu continuava a tremer, mas pelo menos agora eu tinha luz. Tentei usar as brasas para cozinhar alguma coisa, e foi justo quando eu estava tomando um chá que eu o ouvi um rufiar, um bater de asas, eu estava debaixo de uma árvore, a folhagem e os galhos que me serviram como um tipo de telhado também atrapalharam minha visão. Estava muito escuro, a única fonte de luz era minha pequena fogueira, e se seja o que fosse, parecia estar rodeando meu pequeno acampamento, respirei fundo e corri até minha mochila, carregava comigo uma velha espingarda que achei que fosse precisar só para caçar lebres, conferi a munição, peguei uma lanterna contei até três e saltei para fora. Não havia nada.

Curioso, fiz uma ronda ao redor da árvore. Nada, nem pegadas, estariam o frio e a solidão da montanha afetando os meus sentidos? Naquele momento eu implorei para que fosse isso. Foi quando eu ouvi outra vez, o mesmo som do bater de asas, era como um de uma mariposa, só que muito mais forte. Deus, por alguma louca razão eu olhei para cima e imediatamente cai para trás, lá estava ele pairando a mais de dois metros do chão, e só a alguns de distância de mim. Por causa da pouca luz, não pude vê-lo direito, mas juro que parecia um homem, contudo tenho certeza de que não era um. Suas asas deviam ter mais de três metros de envergadura, seus olhos pareciam duas bolas de fogo e eram tão vermelhos quanto sangue, foi quando quase vomitei, pois eu juro por tudo o que é mais sagrado, aquela coisa olhou para mim e sorriu, mesmo que por uma fração de segundos, pude ver os malditos dentes amarelados e pontiagudos, depois ele olhou para cidade e voou em sua direção.

Eu fiquei tão paralisado de medo e assombro que nem lembrei que ainda estava com a arma na mão, embora duvidasse que fosse capaz de acertá-lo depois do estado em que fiquei. Corri até a lanterna e acho que literalmente me arrastei até o abrigo, passei o resto da noite acordado, tentando manter a fogueira acessa, e enquanto rezava, não larguei a arma se quer um momento.

A noite passou e a escuridão foi embora, mas eu ainda estava apavorado. Sem forças, eu me recostei no caule da árvore, foi quando me lembrei de Angeline e consegui me acalmar, foi ai que eu consegui ouvir um certo crepitar na neve, eram passos, alguém se aproximava de mim.

-Fumaça? Tem alguém aí? –Perguntou uma voz velha e temerosa.

Sai das sombras, com a arma em mãos, ele se assustou e apontou a espingarda dele para mim.

-Não, não por favor! Só estou procurando minha namorada!

Minha voz saiu em um tom cansado e desesperado, o gentil senhor largou a arma e correu em minha direção, me ajudou a ficar de pé. Eu estava completamente debilitado.

-Oh rapaz, que lhe aconteceu?

-Se eu lhe contar, não vai acreditar.

Apesar da aparente idade avançada, ele me ajudou a subir a montanha, curiosamente sua casa ficava muito perto dali, em uma área onde ainda haviam muitas árvores. Quando chegamos ele me serviu um caldo meio avermelhado, estava bem quente, quando terminei me senti um pouco mais revigorado.

-E então rapaz, você disse que está procurando sua namorada, que história é essa?

Puxei a carteira do bolso e lhe mostrei uma foto de Angeline.

-Esta é Angeline Coriel, minha namorada. Ela despareceu a mais ou menos duas semanas. Sumiu no dia em que a ponte caiu.

-Ponte? Que ponte? A Gordon Gates?

-Sim, –respondi confuso. –A Gordon Gates caiu, não soube?

-Por aqui nós não temos como saber das coisas filho, como pode ver, se quer temos energia elétrica.

O velho tinha razão, e eu nem tinha percebido. De fato, eu não era o único maluco que gostava de viver nas montanhas, muito embora minha casa tivesse TV por assinatura, chuveiro quente e até internet banda larga. A dele, bem a dele tinha peles e cabeças de alce para todo lado, mas tinha uma enorme lareira, era bonita, só mal decorada.

-Além do mais –continuou ele, –só vou a cidade uma vez por mês, e isso quando preciso de algum mantimento.

-Pois é, há duas semanas exatamente a meia-noite ela começou a tremer e aos poucos foi ruindo até desabar completamente.

-Foi quando a moça da foto sumiu? E porque não acha que ela estava na ponte na hora da queda?

-Ela estava em casa, tínhamos acabado de nos falar pelo telefone quando fui dormir, uns dez minutos depois eu... acho que toda White Brook ouviu a ponte desabando, tentei entrar em contato com ela, mas nada. Quando a polícia chegou, só encontrou a casa toda fechada com a janela do quarto dela aberta. Eles acham que ela saltou pela janela e saiu correndo desesperada... tiras de cidade pequena são realmente uma espécie a ser estudada...

-Então ela sumiu misteriosamente, pouco depois da meia-noite, exatamente no dia em que a ponte desabou?

Ele pôs a mão no queixo e ficou olhando para as chamas, parecia estar refletindo, foi quando percebi que ele parecia saber de algo e estaria com algum tipo de receio em me contar.

-Qual o seu nome filho?

-Bloch, senhor. Alexander Bloch.

-Muito prazer Alexander. Eu me chamo Albert Perkins, e moro nessas montanhas a quase quarenta anos, devo dizer que essa deve ser a primeira vez que vejo alguém que sumiu lá embaixo sendo procurado aqui em cima.

Quando o senhor Perkins disse aquilo, de repente eu estremeci, afinal que diabos eu estava fazendo ali correndo o risco de morrer congelado? No mais, há bosques com centenas de acres lá embaixo, onde Angeline poderia estar perdida, sozinha e desorientada, mas não, por alguma razão eu vim procurar por ela aqui em cima. Atônito, eu olhei para o velho homem, ele sorria esperando que eu dissesse alguma coisa.

-E então filho, por que acha que sua namorada está aqui?

-E-e-eu não sei... por Deus, eu não faço ideia do que estou fazendo...

Comecei a tremer e levei as mãos ao rosto, coisas confusas começaram a acontecer depois da noite em que a ponte caiu. Talvez devido ao cansaço da noite anterior, acabei apagando no sofá do senhor Perkins. Quando finamente tive forças para abrir os olhos, ele ainda estava lá, sentado de pernas cruzadas em uma cadeira de balanço, ele fumava tranquilamente um cachimbo.

-Sabe filho, farei setenta e cinco anos no mês que vem, esses pés fedorentos já andaram por muitos lugares, e esses olhos, hoje quase apagados, já viram muita coisa...

Sabe, uma noite eu voltava de carro com meu pai da mina, nós pegamos um atalho pela ponte, eu comecei a olhar pela janela para admirar o bosque e o rio, foi quando de relance, eu acabei olhando para cima. Na hora eu estremeci, parecia que estava nos seguindo desde a mina. Sabe nossa velha casinha ficava lá embaixo em um vilarejo perto da nascente, naquela noite eu olhei pela janela, ele estava lá parado olhando para nós, aqueles olhos vermelhos no meio das folhas... acho que deve ter passado a noite toda lá. No dia seguinte, contei para o papai, ele não acreditou em mim, disse que eu estava ficando louco, nós fomos para o trabalho, mais tarde naquele dia quando chegamos, minha mãe e minha irmãzinha tinham desaparecido. Quase reviramos o bosque de cabeça para baixo procurando por elas, mas nunca encontramos nem sinal do que possa ter acontecido, nas semanas seguintes outros desparecimentos inexplicáveis continuaram a acontecer.

O que é que você disse sobre tiras de cidades do interior? Quando papai, eu e um monte de pais, maridos e esposas procuramos a polícia, eles nos vieram com um monte de desculpas esfarrapadas, foram lá duas ou três vezes, depois nunca mais se quer os vimos... um dia chamaram um ministro para rezar por nós, achavam que a terra estava amaldiçoada ou algo assim, no dia seguinte foi a vez da filha do ministro desaparecer. Depois disso uma a uma, as famílias que faziam parte do nosso vilarejo foram deixando White Brook, no final daquele verão só restaram eu e o papai. Depois nós nos mudamos para essa casa, os anos passaram, o velho não aguentou a saudade e acabou definhando, desde então vivo sozinho aqui.

O senhor Perkins me serviu um chá, fiquei olhando fixamente para o vapor que subia do copo enquanto contava sua breve história, estava desolado, olhei para ele e seu sorriso sereno me acalmou.

-Por que me contou isso?

-Filho, enquanto você estava aí apagado começou a delirar, por quase uma hora você não parou de implorar para que alguém o salvasse, para que alguém afastasse os olhos vermelhos de você. Quando foi que você o viu?

A princípio confesso que cheguei a titubear, não pensei que ele acreditaria em mim. Aliás, pensei que ninguém acreditaria em mim.

-Ontem. E-e-eu o vi ontem à noite.

-E o que consegue lembrar?

-Além dos olhos... asas enormes e meio cinzentas... dentes pontiagudos, pés parecidos com pés humanos mas com garras em vez de unhas... E só. Estava muito escuro e não pude conseguir distinguir muita coisa.

-Então o miserável acordou...

-Acordou? Como, como um animal que estava hibernando?

-Mais ou menos desse jeito, o problema é que nunca se sabe direito quando começa ou quando termina.

Completamente perplexo levei as mãos ao rosto e comecei a tremer outra vez. Tantas pessoas que eu chamei de lunáticas após terem dito que o viram, dezenas de lendas, mitos, um medo travestido de preconceito que as pessoas de fora têm de White Brook, a vontade quase insana que outros têm de deixar a cidade... então era por isso...? Por causa dele? Tudo por causa daquela coisa!

-Senhor Perkins, o que ele é?

-Filho?

-Os olhos vermelhos, o que ele é?

O senhor Perkins abaixou a cabeça e pareceu refletir por alguns instantes, em seguida ele saiu e foi até um quarto nos fundos da choupana, voltou me trazendo um caderno e algumas pastas de documentos.

-A verdade filho? Ninguém sabe. Histórias sobre ele são contadas desde quando o homem atravessou o Estreito de Bering para procurar novas terras. No começo pensavam que era apenas um outro animal esquisito, como os que viveram naquela época, mas o tempo foi passando e eles foram percebendo que ele nem se quer devia pertencer a esse mundo.

Foi então que o senhor Perkins me mostrou algumas fotografias de sítios arqueológicos no Alasca, em estados fronteiriços entre a os Estados Unidos e o Canadá, além do próprio Canadá, eram fotografias de pinturas rupestres onde um grupo de homens, ao que parecia, estava de joelhos adorando alguma coisa criatura alada. E em alguma caverna do Alasca, encontraram junto do que parecia ser um corpo mumificado de um xamã, uma figura que lembrava um homem com grandes olhos vermelhos, pés como os de uma águia e asas que iam de um pouco acima dos ombros até a ponta dos pés.

-Membros de uma certa tribo de esquimós costumavam recitar um poema, Aqui é sua casa, ele já estava aqui. Antes dos ingleses, antes de Colombo, antes do povo que veio do mar, antes de nós e até dos animais. Tudo aqui pertence a ele, tudo... inclusive nós... sabe, na ilha de Java existe uma lenda de uma criatura a quem chamam de Ahool, um morcego gigante com cara de homem. –Um momento para uma longa tragada no cachimbo. –É bem assustador não é? Entretanto sou capaz de apostar minhas botas que até mesmo esse tal de ahool mijaria nas causas se, se encontrasse com essa coisa cara a cara.

Fiquei em silêncio por um momento, confesso que senti correr por minha espinha um arrepio tão gelado que pareceu corta-la ao meio... aquelas garras... aqueles dentes... os olhos escarlates mais do que acostumados a carnificina... sem muito esforço, ele poderia ter-me feito em pedaços a hora que bem quisesse, mas por alguma razão ele, ele me poupou. Senhor Perkins tinha razão, ele não era um animal, predadores não brincam com suas vítimas, eles não são capazes de se atrever a deixar escapar o momento, muito menos são capazes de mostrar algo semelhante a um sorriso. O que diabos ele era, não importava para mim, todas as circunstâncias indicavam que ele tinha levado Angeline, trazê-la de volta, isso sim importava, era tudo que importava.

-Espera aí, aonde vai com tanta pressa rapaz?

-Sabe onde se esconde? Já viu alguma pista, algum sinal?

O senhor Perkins apertou meu ombro e olhou no fundo dos meus olhos, eles se encheram de água, senti que o velho ia chorar, de repente ele deu um longo suspiro, sorriu e me contou outra história.

-Em 1817 um louco chamado Zebediah Crowley veio buscar ouro nesse lugar, que na época não passava de um ajuntamento de uma dúzia de casinhas de madeira, ele subiu a montanha com todo tipo de equipamento de garimpo que se possa imaginar, “não havia ouro apenas no oeste” ele gritava o mais alto que podia. Um dia ele conseguiu abrir um buraco do outro lado daqueles blocos de rocha que você vê ali, ele conseguiu cavar um túnel e foi parar em uma caverna para lá de esquisita quase no coração da montanha, lá ele encontrou umas coisas estranhas, tão brilhantes quanto o ouro, tão lindas quanto o céu, a lenda diz que pareciam ovos de avestruz. Ele desceu a montanha quase correndo, mostrou para todo mundo lá embaixo, mas quando decidiu ir para outra cidade tentar vender seu tesouro, aquele negócio murchou e secou, se tornou semelhante a um casulo vazio, quando o velho Zeb expôs aquele troço esquisito ao vento, ele os levou como se fosse um monte de cinza. O coitado voltou para casa de mãos abanando, ele ainda tinha guardado um dos ovos, misteriosamente ele parecia voltar ao normal cada vez que ele se aproximava da montanha. Foi quando Zebediah e todos os seus amigos entenderam...

-Que aquele tesouro pertencia a montanha, e que a montanha pertencia a cidade, e a cidade... pertencia a alguém... Eu conheço essa história senhor Perkins, minha vó costumava me contar.

-Agora que já sabe, parece que não vai precisar mais da minha ajuda. Uma pena, estava começando a gostar de você.

-Espere, vai me levar até lá?

-Eu mesmo iria filho, mas como pode ver o tempo passou e acabou comigo, esperei tanto tempo, mas agora acho que não sou capaz de aguentar nem a força do vento.

Não era necessário ser um especialista na chamada linguagem corporal para saber que ele estava mentindo, afinal mesmo tão velho, naquela hora ele praticamente me carregou até sua cabana. Mas e daí? Ele já tinha me ajudado, mais do que pode imaginar. Ele saiu e voltou com outra tigelinha de seu caldo.

-Beba tudo filho, você vai precisar de toda a força que tiver, além do mais, não pode enfrentar uma criatura milenar com uma carabina velha dessas, tome isso filho, faz um belo de um estrago.

Realmente a arma dele era muito mais potente do que a minha, e embora não tivesse certeza de que ela poderia matar a coisa, quem sabe, poderia feri-la gravemente, naquela hora minha me enchi de fé e esperança. Mais tarde o senhor Perkins me guiou por um caminho em meio as fendas dos rochedos, paramos a poucos metros da entrada da caverna que Zebediah Crowley cavou.

-Garoto, não tenho como te explicar agora, mas só posso vir até aqui. Mas antes de você ir eu quero te dizer uma coisa.

-Sim?

-Naquela hora você disse que não sabia o que estava fazendo aqui, não sabia por que é que veio direto para cá. Bem, eu vou dizer o porquê filho, um troço chamado amor. Foi o amor que você sente por essa moça, essa conexão extraordinária que existe entre vocês que te guiou exatamente para cá, e agora eu tenho certeza que ele vai te guiar exatamente para os braços dela. Deus o abençoe filho, seja valente e acabe com esse pesadelo.

Ele se despediu de mim com um simples tapinha no ombro e um sorriso gentil, eu fiquei parado olhando para ele, ele continuou caminhando sem olhar para trás até desaparecer no meio da neve. Daquela hora em diante eu estava sozinho, respirei fundo e entrei na caverna de Zebediah Crowley.

Com uma pequena lanterna em uma mão e arma que o velho Perkins me deu em outra, comecei a seguir por aquele estreito túnel, difícil de acreditar, mas fora escavado na rocha maciça, é claro que o velho Zeb deve ter contado a ajuda de algumas toneladas de dinamite onde era duro, e boas ferramentas onde a rocha era um pouco mais branda. O túnel era um pouco confuso, a sensação ora era de que você estava seguindo na horizontal, ora estava na vertical, por um momento cheguei a ficar meio tonto, estava sofrendo uma brusca mudança atmosférica, foi quando finalmente encontrei a caverna da qual fala a lenda.

Era larga e espaçosa, haviam buracos no teto por onde uma fraca luz penetrava o recinto, uma grande abertura que ia dar de frente com um forte paredão de rocha maciça de um lado, e outra que levava a um caminho totalmente escuro e desconhecido do outro. Me agachei por alguns instantes, no chão acabei me deparando com algumas dezenas de ossos, tanto de animais quanto de humanos. A minha frente, haviam quase uma dezena de túneis, se eu escolhesse o errado poderia ficar perdido para sempre na escuridão até ser apanhado por aquela coisa, se escolhesse o certo iria direto para os braços de Angeline, escolhi um que estava bem a minha frente e segui.

Confesso que dessa vez, acabei usando a lógica e escolhi o túnel mais largo possível, com espaço suficiente para ele abrir as asas e ainda carregar suas presas com os pés. No meio do caminho, encontrei um velho detonador junto de algumas dezenas de bananas de dinamite, alguém pretendia causar uma bela explosão, mas por alguma razão acabou desistindo. Mais alguns minutos de caminhada, o túnel agora estava ficando úmido, foi quando um cheio acre veio direto em minha direção, o cheiro era horrendo, insuportável. Contudo, comecei a correr na direção de onde ele vinha estava com um pressentimento, desacelerei meus passos, parei por um instante, precisei tomar um fôlego.

Aquela caverna devia ter o triplo, não o quadruplo, talvez muito mais do tamanho da primeira, o teto era altíssimo mas dava para ver claramente o que tinha lá dentro, pareciam ovos de aranha, mas eram talvez milhões de casulos com formato igualzinho a um ovo. No chão, haviam alguns rasgados, em seu interior ossos, tanto humanos como de animais. Com uma faca comecei a cortar a casca de um dos que estavam no chão, quando finalmente consegui abri-lo, mordi a língua para não dar um berro de horror. Dentro do casulo havia um cadáver morto a semanas, talvez até meses. Meu horror foi por quê aquele em especifico tivera uma morte extremamente violenta estava com a face e o peito totalmente dilacerados. Enquanto verificava outros casulos, ouvi o que parecia ser um guincho, um grito agudo e agonizante, precisei me apressar.

Comecei a me desesperar, estava tão lambuzando com aquele liquido fedorento gelatinoso e esverdeado que mal conseguia segurar a faca, foi quando vi uma sombra passar por mim e depois voltar, apavorado corri e consegui me esconder embaixo de uma formação rochosa. Graças aos céus ele não viu. Ele desceu até os casulos abertos, pareceu fareja-los, vasculhou um por um, depois soltou um berro agudo que reverberou por toda a caverna fazendo-a praticamente tremer, meus tímpanos quase estouraram. De repente, ele deixou a sala e voou para outro lugar, eu saí de meu esconderijo, olhei para cima e agradeci aos céus, retomei minha busca por Angeline.

Não lembro quanto, mas sei que caminhei sem rumo durante muito tempo até que no meio da estranha vegetação e as pilhas dos pertences das vítimas, encontrei uma sandália, era de Angeline olhei com mais calma, até que encontrei um casulo um pouco mais afastado grudado na parede de rocha, tinha coloração diferente, era um branco mais ávido, diferente do branco creme dos outros. Com uma força que tirei não sei de onde, corri até o casulo e o abri de cima abaixo, ela estava lá, minha doce princesa estava lá! Mas parecia não estar respirando, desesperado comecei a fazer uma massagem cardíaca nela, junto de um boca-a-boca, por Deus! Ela tossiu, vomitou um pouco da gosma verde e voltou a si, por Deus... Angeline, minha princesa, o meu doce amor... estava viva!

-A-A-Alexander...?

-Angeline? Meu amor...

-Alexander...? Alexander...? Alexander...!

Ela começou a chorar e acariciar o meu rosto, eu comecei a chorar também, já tinha perdido as contas de quantos casulos eu tinha aberto, de quantos cadáveres imundos eu tinha descoberto, e bem quando já estava enlouquecendo de tanto horror, um anjo veio me devolver a sanidade. Ela estava sã e salva, ainda com seu vestido branco de mangas compridas, ainda com seu sorriso divino, em meus braços chorando de felicidade.

-Angeline consegue andar?

-A-a-a-acho que sim.

-Precisamos sair daqui, ele pode voltar a qualquer momento.

Levantamos e eu comecei a puxa-la pelo braço, tínhamos que atravessar toda a sala. Pelo caminho comecei a abrir vários dos casulos, na esperança de encontrar mais alguém com vida, mas tudo o que caía eram cadáveres, alguns aparentavam estar mortos a décadas. Não sei como explicar tal milagre, mas havia a possiblidade de que Angeline fosse a única pessoa viva ali.

De repente, nós ouvimos o mesmo o mesmo grito agonizante, mas dessa vez muito mais intenso. A criatura claramente procurava por quem tinha aberto os casulos, e aquele berro demonstrava seu desespero ao perceber que sua busca estava se tornando exaustiva e infrutífera.

Por um momento eu parei para olhar para Angeline, ela era repórter como eu, tinha muito talento, trabalhávamos juntos no jornal. Ela era baixinha, branca quase pálida, ás vezes eu fazia piadas com ela por conta disso, ela se irritava e ficava toda vermelha, mas depois nos resolvíamos com abraços, beijos e risadas. Assim que paramos ela me encarou e sorriu tão gentilmente para mim, parecia que ela sabia exatamente o que eu estava prestes a fazer. Me aproximei dela, afaguei seus cabelos negros como a noite, lhe abracei o mais forte que podia, depois lhe dei o beijo mais intenso de toda a minha vida.

-Eu te amo Angeline.

-Eu te amo Alexander.

Repentinamente ouvimos os ecos das batidas de asas nos corredores dos tuneis, ele estava perto, outro berro assustador, ele estava muito perto. Angeline e eu nos encaramos, demos as mãos e começamos a correr em direção ao túnel por onde entrei, tarde mais ele estava sobre nós, desesperado joguei Angeline para o lado e atirei para cima duas vezes, acho que o acertei, ele rodopiou e se chocou com o teto, acabou caindo a alguns metros de nós.

-É NOSSA CHANCE! VAMOS! –Gritei alucinado.

Juntamos todas as nossas forças e recomeçamos a louca corrida, olhei para o meu lado esquerdo, a criatura começava a se reerguer no meio do entulho e da estranha vegetação, um brilho esquisito que vinha do teto iluminava partes da caverna, os pelos da coisa brilhavam ao serem atingidos pelos esparsos raios de luz, seus pelos, seus olhos e seus dentes.

-Atrás de mim Angeline! Atrás de mim!

Ele voou direto em nossa direção, atirei mais duas vezes, direto no peito dele, ele caiu para trás. Desorientado, começou a rolar de um lado para o outro, outra vez o velho Perkins estava certo, embora aquela arma não fosse o suficientemente capaz de mata-lo, era útil para atrasa-lo, atrasa-lo tempo o suficiente para eu poder usar outra coisa.

-Vamos Angeline, eu tenho um plano!

Enquanto eu continuava a atirar para trás, nós corremos feito loucos pelo túnel, e que ironia, aprouve aos céus que Angeline tropeçasse bem em cima das dinamites e do detonador. Recarreguei a arma e entreguei nas mãos dela.

-O que está fazendo?

-Ainda sabe atirar certo? Atrase-o o máximo que puder!

A criatura ensandecida veio em nossa direção, Angeline deve tê-lo acertado direto no peito umas cinco vezes, mas nada parecia ser capaz de pará-lo, ele estava enlouquecido. Outro grito agudo, nossos ouvidos doeram, finalmente consegui terminar de preparar a dinamite, um tio uma vez me ensinou.

Ao meu sinal, Angeline atirou com tudo em direção a coisa, cortei o fio do pavio e o acendi com um isqueiro que sempre carregava comigo. Nós corremos, de mãos dadas, com toda a força que nos restava, nós corremos em direção a uma luz que estava a nossa frente, enquanto a pequena chama do pavio seguia a toda na direção oposta. Saltamos para fora e mesmo trôpegos, continuamos a correr no meio da neve, ouvimos outra vez o grito agudo da criatura, dessa vez pela última vez.

Um silêncio seguido de um forte zumbido antecedeu um estrondo, seguido por e um forte abalo nas rochas da montanha, entendi porque a pessoa que pôs as dinamites ali desistiu da ideia, por mais fraca que fosse, qualquer abalo de explosão poderia fazer com que os tuneis ruíssem, essa foi a primeira teoria que formulei, a outra mais aceita, foi a de que a pessoa não teve tempo de pensar nisso. Grandes blocos de rocha simplesmente afundaram atrás de nós, houve uma pequena avalanche, a neve terminou de cobrir tudo, Angeline e eu escapamos com vida, são e salvos longe da explosão, longe da criatura, longe do pesadelo alado, longe de tudo. Agora erámos somente eu e ela sozinhos no meio daquele mar esbranquiçado, lá em cima o céu azul saudava nossa vitória.

-Conseguimos? –Perguntou ela assustada.

-Sim conseguimos. Conseguimos meu amor! Conseguimos!

Eu ria triunfante, ela caiu de joelhos e começou chorar de alivio e felicidade, eu fiquei tão eufórico que quase esqueci de lhe agasalhar, o vestido que ela usava de maneira alguma era próprio para aquele ambiente.

-Alexander como me encontrou?

-Prometo que te explico depois, agora temos que ir, preciso ver alguém.

-Como é?

-No caminho eu te explico.

Eu a agasalhei com meu casaco de lã, nós fomos abraçados o resto do caminho até a cabana do senhor Perkins, mas quando cheguei lá tive uma das maiores surpresas da minha vida.

No lugar onde deveria haver sua humilde choupana feita de pedras e madeira dos bosques, só haviam ruinas. Nós adentramos o recinto, havia apenas lixo e neve amonturados há décadas, a lareira há tempos parecia ser utilizada como toca por algum animal, nem mesmo os quartos que eu jurava ter visto o senhor Perkins entrar existiam mais. No chão havia uma velha fotografia em preto e branco já quase apagada: Jeremiah Henry Perkins e família, agosto de 1922. Eu estava louco não era? Senhor Perkins tinha mais de cem anos? Como um velho de mais de cem anos poderia me carregar com tanta facilidade? Eu o procurei em toda parte, até que nos fundos da choupana encontrei quatro lápides, uma para cada membro da família.

Caí de joelhos diante das lapides e lá fiquei em silêncio, incrédulo, até sentir a mão quentinha de Angeline a me consolar, nos abraçamos e descemos juntos a montanha. Nas semanas seguintes, outras pessoas que também haviam sumido começaram a reaparecer misteriosamente. Eram filhos, pais, mães, irmãos... cidadãos de White Brooke, todos eles contavam a mesma história, diziam ter sido ajudados por um senhor que dizia morar nas montanhas.

Depois daquilo, a criatura nunca mais foi vista, os desaparecimentos cessaram por completo. Winston Banks e governador foram depostos e na semana seguinte, começaram os trabalhos de reconstrução de Gordon Gates.

Agora está tudo bem, Angeline e eu nos casaremos no mês que vem.

IFerSo
Enviado por IFerSo em 02/07/2020
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