OLHAR FRANCO-BRASÍLICO - PARTE III
Recém-casada com o cineasta JEAN LUC GODARD e rodeada pelas 'cabeças' da época, a atriz ANNE WIAZEMSKY viveu a efervescência do período. Em livro, o relato de tudo, líderes de maio/68clamando por uma revolução nos costumes, mas sem se livrar de hábitos arcaicos. Cinquenta anos depois, o livro "Um ano depois", grande publicação - apresenta ao leitor a atriz conhecida pelo trabalhoem filmes emblemáticos de 1950/70 e autora de 16 livros, entre memórias-romances-infantis. Tinha 20 anos na época dos protestos na França; neta do escritor FRANÇOIS MAURIAC, ex-colega de faculdade do líder estudantil DANIEL COHN-BENDIT, acabara de mudar com o marido para um "apè" no Quartier Latin, pertinho da Sorbonne. No ano anterior, fora dirigida por GODARD no polêmico "A chinesa", sátira política e filosófica de jovens revolucionários, visto como filme que 'previu' os movimentos estudantes, definidores para a sociedade e a cultura francesa, o cineasta franco-suíço começando a se radicalizar no engajamento maoísta, ela se firmando com 'auteurs' europeus, filmando com PASOLINI e BERTOLUCCI. - No olho do furação, sempre rodeada de cabeças culturais - livro "Vingadores", cinema de vanguarda, cores vivas da Nouvelle Vague, de Jacques e Chris Marker, e também o filósofo Gilles Deleuze; ela observa da janela os acontecimentos fora quanto de dentro dos protestos, narração precisa e despojada traduz a excitação e medo nas ruas, como quando, em cenas deliciosas Jean-Pierre Léaud corre da polícia pedindo socorro de porta em porta... - "por uma noite... uma semana... um mês..." ou Rivette que tentar guiar a todos como quia de guerra e chora de decepção com a escassez de seguidores. Paradoso, ela, narradora, deslocada, jovem recém-casada, elite burguesa e intelectual, musa do cinema e do circuito intelectual. passeia cândida de patins na cidade em guerra e transportes paralisados. Contradições entre eventos que a cercam, diferenças entre discurso e prática. Ciúmes de GODARD nas filmagens com outros diretores em cenas de tirar a roupa; e sem perceber a lógica patriarcal do seu próprio casamento, a atriz entrega todo o dinheiro que ganha e recebe uns trocados quando precisa, embora ele dê grandes sermões feministas não os seguindo no cotidiano. ANNE investiga transição interessante: protagonistas de maio/68 clamam por uma revolução de costumes, mas não conseguem se livrar dos hábitos em que foram criados. - Com inteligência, senso de humor e temperamento brigão, GODARD é um grande personagem - em trecho bonito de "Um ano depois", vemos Philippe Garrel (com quem mais tarde a atriz filmaria depois) no instante exato em que anuncia afastar-se do cinema e se marginalizar do circuito. O início do fim do casamento, após tentativa de suicídio de GODARD, 1969, é também a virada de um ano único inesquecível.
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FONTE:
"Um olhar privilegiado, e pecular, sobre a cena", artigo de BOLÍVAR TORRES - Rio, jornal O GLOBO, 6/6/18.
F I M