Obsessão
A poltrona, de um vermelho queimado pelo sol, foi posicionada de frente para o quadro já faz uns mil anos. E há quanto tempo ele está ali sentado, não sei precisar. Levo o prato e deixo lá, na mesinha que eu mesma puxei para perto. De vez em quando levo um copo d’água, um café, um líquido qualquer, para ele não desidratar. Isso não aconteceu ainda, embora não beba quase nada. Tem dias que come. E fala, também. Às vezes aos berros, às vezes sussurrando. Custei a entender, mas descobri que são poesias. Declama sua dor. As lágrimas já secaram há muito, mas o peito continua a soluçar. E o barulho rouco invade a casa e espanta o gato e me faz arrepiar. Quando dorme, braços dependurados como fantoches que são, eu o cubro e rezo para seu anjo o guardar. Quando amanhece, abro as cortinas implorando ao sol para que de mansinho o aqueça. Quando acorda, lavo seu rosto, seus dentes como os de um convalescente. Quando se borra, limpo suas imundices e, aí, sou eu quem chora. E, por incrível que pareça, vendo minhas lágrimas, ele sorri. Sorriso meigo, infantil, pedido de perdão mesclado de vergonha. E a lucidez bóia cadavérica, por alguns segundos, em seu olhar.
Resolvi salvar meu menino dessa dor. Vou rasgar o quadro, queimar a poltrona. Vou amarrá-lo embaixo do chuveiro, raspar a barba amorfa, cortar o cabelo desgrenhado. Vou borrifar água de cheiro, por todo seu corpo esquálido e vestí-lo com alvas roupas, de macio linho. Se depois disto tudo eu continuar inteira, ligarei para todos os seus amigos, até mesmo para aqueles que desapareceram, e os convidarei para comemorar.
Foto: gmcosta — Desesperança — Album: Barcelona - A Sagrada Família
A poltrona, de um vermelho queimado pelo sol, foi posicionada de frente para o quadro já faz uns mil anos. E há quanto tempo ele está ali sentado, não sei precisar. Levo o prato e deixo lá, na mesinha que eu mesma puxei para perto. De vez em quando levo um copo d’água, um café, um líquido qualquer, para ele não desidratar. Isso não aconteceu ainda, embora não beba quase nada. Tem dias que come. E fala, também. Às vezes aos berros, às vezes sussurrando. Custei a entender, mas descobri que são poesias. Declama sua dor. As lágrimas já secaram há muito, mas o peito continua a soluçar. E o barulho rouco invade a casa e espanta o gato e me faz arrepiar. Quando dorme, braços dependurados como fantoches que são, eu o cubro e rezo para seu anjo o guardar. Quando amanhece, abro as cortinas implorando ao sol para que de mansinho o aqueça. Quando acorda, lavo seu rosto, seus dentes como os de um convalescente. Quando se borra, limpo suas imundices e, aí, sou eu quem chora. E, por incrível que pareça, vendo minhas lágrimas, ele sorri. Sorriso meigo, infantil, pedido de perdão mesclado de vergonha. E a lucidez bóia cadavérica, por alguns segundos, em seu olhar.
Resolvi salvar meu menino dessa dor. Vou rasgar o quadro, queimar a poltrona. Vou amarrá-lo embaixo do chuveiro, raspar a barba amorfa, cortar o cabelo desgrenhado. Vou borrifar água de cheiro, por todo seu corpo esquálido e vestí-lo com alvas roupas, de macio linho. Se depois disto tudo eu continuar inteira, ligarei para todos os seus amigos, até mesmo para aqueles que desapareceram, e os convidarei para comemorar.
Foto: gmcosta — Desesperança — Album: Barcelona - A Sagrada Família