Raízes
Deitada no tapete da sala, ela passava os olhos pela decoração do recém-adquirido imóvel. Sua primeira conquista. A realização de um sonho. Sinal que as coisas estão dando certo longe da casa dos pais e um importante passo para a sua independência.
Tudo está ajeitado no seu lugar. Porta-retratos, lembranças das ainda poucas viagens, livros – impossível não os ter, “onde já se viu uma casa sem livros?”, diria seu pai. As paredes coloridas dão um realce especial no pequeno e aconchegante apartamento. Seus olhos se demoram no quadro que se destaca no centro da sala.
Com os cotovelos sobre as almofadas e dedos acomodados entre os cabelos cacheados, lembra de quando ganhou aquele quadro. Seu pai o pintou inspirado numa foto de quando ela tinha 4 anos. Na foto, estava brincando de fazer bolinhas de sabão à beira da Lagoa da Pampulha, ao lado da Igreja de São Francisco, em Belo Horizonte. Era uma foto com efeito envelhecido, assim como os tons usados na pintura. O cacheado dos cabelos fora reproduzido em alto-relevo, o que dá um toque especial à arte. Atrás da tela ele escreveu um poema. Emocionada, ela balbucia alguns versos...
Os anos passarão
E você desejará voltar...
Mas se verá ainda além da tela
Ao se dar conta da menina que foi um dia...
E um sorriso se abrirá tão lindo
Emoldurando os mesmos lábios que
Numa tarde de domingo
Embalavam sonhos inocentes em frágeis bolhas de sabão
Ainda pensando no poema, abre um vinho tinto, blend de Merlot e Cabernet Sauvignon, e coloca Michael Jackson para tocar – claro, aprendeu a ouvir o Rei do Pop com o pai. Também poderia ter escolhido Oswaldo Montenegro, Djavan ou Maria Bethânia, mas não queria, por agora, ouvir canções com letras intimistas. A distância paterna costuma mexer com as suas emoções. A ligação entre eles sempre foi muito forte e, agora, olhando aquele quadro sob a luz baixa do ambiente, foi tomada por muitas lembranças.
Foi uma menina criada em meio a muita música, muitos livros, muita risada e muita conversa. Aos domingos, o churrasco era sagrado. Construiu valores bem enraizados, tornando-se uma pessoa generosa e intolerante a atitudes preconceituosas.
O seu círculo de amigos é muito diverso, o que lhe proporciona experiências culturais interessantes, que fogem do lugar comum e das opiniões generalizadas. Sua visão de mundo é independente e centrada em fatos históricos e suas consequências. Seguir em frente olhando no retrovisor da história: um lema de vida.
Um incômodo que traz nas suas memórias são as cisões familiares por questões religiosas. De origem protestante, seu pai se afastou da igreja institucionalizada ainda quando era bem pequena. Isso causou um certo distanciamento em relação ao resto da família. Uma indiferença velada, mas percebida. A sua liberdade de pensamento moldou a filha, que hoje vê um Deus para além das manifestações religiosas, porém como expressão de um amor tão grande, que ama incondicionalmente e que pede que amemos às pessoas e demonstremos esse sentimento através de gestos e atos de compaixão, inclusão e acolhimento.
Ela não frequentou catecismos, mas foi moldada na poesia que lhe transmitia os valores do Eterno. Ela acredita que tudo deva ser feito com amor e por amor.
O amor e Papai-do-Céu são a mesma pessoa,
por isso ele é tão forte!
Quem ama não anota as falhas,
porque amar é perdoar, é tentar compreender,
ainda que o coração fique doendo e chore escondido.
Quem ama sempre vai ter um motivo pra sorrir
e se apaixonar de novo todos os dias.
Aprendeu ainda a importância de se manter informada para não cair em discursos populistas, autoritários e enganadores. Entendeu a importância da liberdade de escolher o próprio caminho, de ter a própria opinião e as rédeas do próprio destino.
Ela sabe da relevância de ir às urnas para escolher um representante. Para além das paixões partidárias e ideológicas, há que avaliar as propostas, a postura, as alianças e, no nosso caso brasilis, mais do que nunca, o vice. Um conjunto de ações e posicionamentos que podem resultar tanto em benefícios, como no aumento da miséria do povo. Todos precisam se conscientizar do poder que têm nas mãos.
Ela usa, como ninguém, o silêncio como seu melhor argumento, no entanto aprendeu que em cima do muro não é um lugar digno. Não se posicionar pode parecer confortável e até conveniente, porém o posicionamento firme, coerente, baseado em argumentos concretos e racionais, valorizam o humano do ser.
Lembra das vezes em que foi reprimida por omitir a verdade. Coisas normais que crianças e adolescentes pensam estar escondendo dos seus pais, mas que são instrumentos pedagógicos para moldar o adulto que virá. Pelas repreensões e castigos aprendeu que passar pela vergonha de assumir um erro nos faz dignos, evidencia a verdade que há em nós. Aprendeu que todos erram, mas também todos podem ser perdoados.
Mas se verá ainda além da tela
Ao se dar conta da menina que foi um dia...
Hoje ela olha para aquele quadro, repassa as suas lutas, os ensinamentos que recebeu e percebe o quão válidos foram.
Ao se dar conta da menina que foi, ao se ver do lado de cá da tela, vivendo num mundo absurdamente competitivo, onde não se pode confiar nas pessoas e é preciso reagir rápido aos imprevistos, saber que ainda pode contar com seus pais, mesmo longe, é um bálsamo. Saber que há um Deus fora das paredes dos templos é uma certeza muito reconfortante para seguir em paz.
A garrafa está vazia... Michael Jackson canta Man in the Mirror…
I'm starting with the man in the mirror
I'm asking him to change his ways
And no message could have been any clearer:
If you wanna make the world a better place
Take a look at yourself and then make a change
A tela emoldurada estará por ali, harmonizando a decoração da sala de estar. A menina retratada, pintada e louvada nos versos do seu pai sairá pela vida afora... vai rir e chorar, vai amar, vai se desiludir e apaixonar de novo, mas não vai parar. Vai experimentar os diversos sabores do viver, nem sempre doces, nem permanentemente amargos. Ela não se permitirá ser personagem de um relacionamento abusivo, tampouco objetificada por nenhum poder.
Ela continuará risonha, ouvindo boas músicas e tomando bons vinhos, porém sem dispensar as bagaceiras, as misturebas e as aventuras de uma farra ocasional. Não se proibirá encontros descompromissados, porém seus limites estarão bem estabelecidos.
Será mulher digna que acolhe, se posiciona, erra e acerta. Vai bater asas e vai voar, porque a vida segue e é preciso sair do lugar comum e ir por aí, respirar outros ares e adquirir sua própria bagagem.
Vez ou outra voltará às raízes. Um beijo no pai, confidências à mãe. Talvez tenha um filho para repassar as suas memórias e ensinamentos...
* Texto publicado na Revista Travessias Literárias Nº 2
Ilusração: Gisely Poetry