SETE – Segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018, 22:38
 
O estabelecimento de uma porta só deve fechar daqui a meia hora, mais ou menos, calcula o homem de boina, que agora não é azul-ferrete, mas verde-escuro, enquanto está sentado em um banco da praça principal do vilarejo para onde foi instruído a estar. Mesmo podendo chegar à hora que preferisse, mas que sua incumbência fosse realizada a partir do momento em que a noite virasse madrugada, no entanto antes das quatro, ele decidiu que, não contrariando o costume, estudar a redondeza com os próprios olhos com certa antecedência seria melhor. Enquanto passeou pelos arredores, viu que, conforme lhe fora informado, a única porta dava para a rua principal. Por causa de haver uma lâmpada com sensor de presença e duas câmeras de vigilância no alto da fachada, coisas a serem evitadas, teria de criar acesso ao lugar pela parte de trás. Mas para isso seria necessário entrar pelo estabelecimento da rua paralela, uma espécie de barracão, e aparentemente sem funcionamento há muito tempo, a julgar pela aparência de abandono. Logo após o barracão, havia uma área cimentada ampla e, depois dela, um muro bastante alto separando os dois terrenos. Em concordância com a observação final da anotação, não havia cão de guarda em nenhum dos lados. Fácil demais. Muito mais fácil do que ficar zanzando no Terraço Itália até o momento certo de se aproximar da mesa, improvisar distração e derrubar cianeto na última refeição de um dos presentes.       
Antes de começar a repassar o que fará a seguir, voltar ao seu carro e trocar a mochila por outra e se dirigir a outra parte do vilarejo, sua concentração é interrompida pela chegada de um carro com música alta. Dentro dele, um rapaz ao volante, uma garota no lado do carona e outras quatro, todas bêbadas, cantando desafinadamente junto com a música carnavalesca. Pelo jeito, supõe, a festa ainda não acabou para eles. O motorista, sem camisa, branquelo, mas avermelhado pelo sol nos antebraços e na área do pescoço, como num excessivo orgulho de si, parecendo ter uma bola de tênis em cada das axilas e outra no meio das pernas, bem debaixo dos testículos, desce e caminha até o balcão do único bar aberto. Pouco depois retorna com as mãos ocupadas por seis latas de cerveja.
O carro vai embora, e sua atenção se fixa no que ficou. Há algumas bicicletas estacionadas no apoio da sarjeta, algumas mesas dentro e na calçada, às quais pessoas estão jogando cartas ou dominó. Em volta da única mesa de bilhar, os jogadores vagueiam entusiasmados com a partida e a próxima tacada, e de vez em quando pegam goles de seus copos a postos por perto. Lá ao fundo, não muito para cá de uma porta de madeira, do tipo que é trancada com taramela (Ele sabe o que é uma taramela, pois aprendeu lendo Dom Casmurro), que parece ser passagem para o toalete, há um homem sentado com uma lata de refrigerante à sua frente. O único que está silencioso, interessado no futebol que a tevê pregada no alto da parede mostra. O homem da boina pressente certa identificação e se pergunta quanto terá de comum com ele. Baseando-se apenas no que vê, a bebida não alcoólica é um ponto em comum; assistir a futebol, não. Se for do tipo particularmente solitário, daqueles que abrem a boca para falar apenas quando lhe dirigem a palavra, é mais um ponto com que se afina. Se é então daqueles que a maioria teme, ou acha antipático, não sabe dizer. Em seguida, se questiona como será viver em minúsculas urbes como esta em que se encontra. As pessoas certamente se conhecem, o que pode ser bom, mas devem saber e fabular coisas da vida dos outros, e isso nem tão bom há de ser. Mas espera que a maioria se dê bem entre si, nem fabrique o mal ao vizinho, ao concidadão; afinal, tendo em conta o tamanho do lugar, julga que não há espaço nem fundamento para o contrário. Bem, raciocina ele após raspar a garganta, há alguns pouquíssimos que fazem por merecer o castigo.
Mais uma vez seus pensamentos são interrompidos pelo estrondo de uma mesa de metal ao colidir com o balcão. Dois jogadores de dominó, ou de cartas – não dá para saber agora – estão atracados, um empurrando o colarinho do outro. O que estão vociferando não é compreensível. O proprietário – provavelmente é o proprietário – sai de trás do balcão às pressas e tenta apartá-los. Mas não consegue. Tenta de novo e é empurrado agressivamente para cima de uma das mesas ao redor, coisa que o deixa furioso. Sem titubear, pega uma cadeira dobrável, também de metal, e inicia uma série de bordoadas sonoras, bem sonoras e depurativas, nas costas da dupla. Os dois se desgarram imediatamente e, esbaforidos, cambaleantes, saem correndo cada um para um lado. O balconista, baixinho e atarracado, se posta à porta, apontando o dedo em riste para a direita e para a esquerda, para a esquerda e para a direita, esbravejando para que só voltem quando estiverem sóbrios, e que só seja para pagarem a conta. O homem da boina, embora ache que se fosse com ele a coisa teria sido resolvida de modo mais severo, está se sacolejando de rir.  
Não muito tempo depois, com o bar já vazio, as cadeiras e as mesas arrastadas para seus cantos certos, o chão varrido e as duas portas abaixadas, o suposto proprietário deixa de ser suposto e passa a ser proprietário. (Só pode ser.) Monta em seu carro de não menos de duzentos e cinquenta mil e logo desaparece de vista.
O homem da boina se pergunta como será exatamente dar-se o luxo de tal quantia sobre quatro rodas, ir para uma casa certamente não devedora de um único tostão ao carro, passar o restante das horas de descanso com a família, ou sabe-se lá com quem, e no dia seguinte voltar a conviver e lidar com acontecimentos como o da dupla embriagada, os quais, pressupõe, não serão incomuns. Em seu pensar, elabora uma explicação que relaciona a noção de contentamento que cada um tem sobre a vida que leva, sem deixar de considerar a resignação, com a absoluta falta de conhecimento.     
Suspira, levanta-se, coloca as mãos no bolso e sai andando como se fosse um residente local despreocupado indo para casa porque já não há mais com o que se entreter na rua.
Às 3:15, o telefone toca sobre a mesa da sala da frente na delegacia de polícia. O policial de plantão atende sonolento e imediatamente fica desperto. Acabam de avisar que houve uma explosão devastadora na loja de pães e doces ao lado da agência de correio, e que as chamas estão ameaçando progredir para as propriedades das laterais.
Segundos depois de desligar, sem sequer ter tido tempo para acordar seu parceiro, o telefone volta a tocar.                                           
— O Mexerico, ai, Meu Deus, o meu vizinho gordo, tomou um tiro e está caído no alpendre da casa dele – fala histericamente uma voz de mulher.