Quando a vi

Eu seria capaz de dizer em ordem dos carros que tinha na rua. Poderia dizer quantas mulheres usavam vestido e qual a cor e quantas pessoas estavam acompanhadas e quantas andavam sozinhas em toda cidade do Recife. Eu poderia dizer o dia, o mês e o ano, inclusive, quantos segundos se passaram desde a criação do mundo, até o momento em que a vi, mas não sei dizer onde me encontrava pra ter visto isso tudo.

O sorriso, também me lembro do sorriso. Ela sorria, como todo mundo sorri, mas era diferente. Ela olhava como todo mundo olhava, mas também era diferente. Ela andava, como todo mundo andava, mas não parecia do mesmo jeito que as outras pessoas andam. Hoje penso que ela não deveria ser mundo, ou eu que não era?

Engraçado que hoje não me lembro o que me levou a ir pra lá. Minhas pernas talvez andassem sem rumo, e alguma força, dessas que só se explicam quando nos aprofundamos nos mistérios de uma religião oriental hermética, me levaram pra lá. Tenho certeza que não foi consciente.

Os cumprimentos a dois conhecidos, não sei quem eram, eles me sorriram, me cumprimentaram como se me conhecessem, mas não sei quem eram. Na verdade eu nem deveria estar ali, como saber quem me cumprimentava. Também não foi consciente o cumprimento ao pipoqueiro. E disso eu me lembro por que foi nesse m,omento que eu a vi.

Sei que a cor do cabelo era castanho, que seus olhos eram castanhos que a sua pele era também castanha. Eu poderia descrever quantas vezes a saia dele balançou com o vento na esquina da Rua da Aurora, quando ela parou para acender o cigarro. Como também posso dizer quantos segundos ela levou para tirar os óculos do rosto, dobras as hastes e prender na decote da blusa branca que usava. E também quantos passos ela deu até passar por mim e comprar as entradas para o filme.

Mas não, não me lembro qual era o filme que passava. Nem quanto tempo eu levei pra pagar a pipoca e instintivamente pegar os ingressos no bolso. Mas sei a ordem exata que os fios de cabelo se mexeram quando ela passou a mão na cabeça para soltá-los depois que os desprendeu.

Vi que um poeta escreveu uma vez que quando viu alguém os céus se misturaram com a terra e o Espírito divino voltou a se mexer na face das águas. No meu caso foi mais sutil. Sei que entramos no cinema. As luzes se apagaram, ela continuava brilhando duas fileiras a frente. Os vasos de flores luminosos que antecedem os filmes se acederam no cinema São Luís, e é só disso que eu me lembro.

Bruno C Soares
Enviado por Bruno C Soares em 26/06/2020
Reeditado em 29/09/2020
Código do texto: T6988705
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