Solidão de um fantasma
Vovô partiu e o grito de vovó rasgou o véu do silêncio da manhã. Seu espírito estava em pé logo atrás da figura de sua mulher que chorava ao se deparar com o seu corpo pendurado pelo pescoço a uma corda que descia do caibro do telhado. "Como é que você faz isso comigo?" Ele escutava sua mulher dizer em meio ao soluço e aos prantos. "Ora, como eu faço! E todos os seus abusos que eu tive que suportar durante esses anos de casado? Fiz e faria de novo!", Pensou ele sentindo-se orgulhoso por realizar o plano para sair daquela vida de torturas e abusos psicológicos. Com o passar do tempo, Vovô observa calmamente a sua mulher viver o resto dos seus dias, meses e anos. Seus filhos casando e indo embora de casa, seus netos indo morar com a sua mulher para cuidar da sua saúde que com o passar do tempo foi ficando mais frágil. "Será que quando ela morrer ela ficará aqui me fazendo companhia? Esse negócio de ser fantasma é meio solitário!", Pensava ele. Chegou o dia em que a sua mulher faz a viagem! Ele olha ao redor como se esperasse alguém aparecer, mas ninguém aparece. Nos dias subsequentes ele observa as discussões dos seus filhos sobre o que fariam com a casa. Vender, alugar. A casa acumulava uma espessa camada de poeira quando a porta da frente se abre e entra uma de suas netas. Ele observa feliz o processo de limpeza e arrumação da casa para receber os novos moradores. Ele se admirava em como a sua neta cresceu e se tornou uma mulher belíssima. Ela já estava casada e tinha uma filha pequena. Aquilo para ele foi maravilhoso, ter pessoas na casa significava companhia, ainda que não houvesse interação, mas ele teria o que observar. Ele gostava de brincar com a bebê, sua bisneta. Pena que ela chorava sem parar e sua neta acabava por tirá-la do berço e a tomava nos braços para que parasse de chorar, mas ela não parava. Somente fora de casa que a bebê parava de chorar. Seu espírito ficou triste quando viu que sua neta estava se mudando para outra casa por causa do choro da menina. Ele gostava tanto dela. Algum tempo se passou quando novamente o portão da frente se abriu e o seu neto mais novo começa a se mudar para a casa com a sua mulher e seus dois cachorros. Vovô gostou da companhia deles. Jovens, alegres, sempre recebiam amigos e faziam comemorações e festas. O problema dessa vez foi seus dois cachorros que passavam a noite latindo para o espírito de Vovô. Durante o dia era tudo calmo, durante a noite era uma sinfonia perturbadora de latidos, uivos e brigas dos caninos que acabou levando o seu neto a procurar outro lugar para morar. Vovô navegava numa jangada em um oceano de solidão naquela casa que um dia florescia alegria, era agora um deserto de sentimentos, o vazio e a solidão preenchia todos os cômodos da casa. Vovô ficava a pensar em por quê sua mulher não aparecia ali para lhe fazer companhia. Ele lembrou-se dos motivos que o levaram até ali. Seu casamento por conveniência, as arbitrariedades e abusos psicológicos de sua mulher, aquela vida que mais lhe parecia um cárcere. Tirar a própria vida lhe pareceu uma ideia boa na sua cabeça. Mas agora ele via que não. Para fugir seu corpo de um cárcere, Vovô condenou sua alma a uma eternidade de solidão.